domingo, 26 de fevereiro de 2012

Os 90 anos do modernismo brasileiro

            Há 90 anos, no Teatro Municipal de São Paulo, nascia o modernismo brasileiro. Não foi um movimento artístico apenas. Foi também um turbilhão pluralista de ideias, práticas e sensibilidades políticas e culturais que, de certo modo, fundaram o Brasil moderno, ao romper com o academicismo, o bacharelismo, o positivismo e o parnasianismo e ainda com os restos de romantismo que emanavam do século XIX. Era também o prenúncio da derrocada da República Velha, período em que o Brasil estava sob jugo da elite cafeeira de São Paulo. A história é irônica. Quem financiou a Semana de Arte Moderna, realizada nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, foi justamente a elite paulista, que seria apeada do poder, poucos anos depois, em 1930. O movimento de 1922 foi um sintoma do mal-estar do Brasil oligárquico e atrasado.
            São Paulo liderava o atraso tanto quanto comportava a vanguarda. A cidade vivia um período de modernização urbana, de expansão tecnológica, de maquinização da vida, de industrialização. Havia imigrantes de toda parte e os movimentos operários, de inspiração anarquista e socialista, pululavam. Era essa e não outra a cidade brasileira mais receptiva aos movimentos de contestação da tradição oitocentista da Europa. O Futurismo (1909), o Expressionismo (1910), o Cubismo (1913), o Dadaísmo (1916) e o Surrealismo (1924) ecoaram no modernismo brasileiro, que começara naquela fatídica semana de fevereiro de 1922, mas que deitaria raízes na cultura brasileira nas décadas que se sucederam.
            O modernismo brasileiro, diferentemente dos modernismos europeus, foi intensamente acometido pela tarefa de construir a nação. A literatura de Oswald e Mário de Andrade, a música de Villa-Lobos, a pintura de Di Cavalcanti e Anita Malfatti, estavam empenhadas em expressar, pensar, narrar, pintar, enfim, descobrir o Brasil. A língua portuguesa foi abrasileirada, pois libertada do formalismo de raiz lusitana e mais próxima dos falares brasileiros. Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, foi quem levou mais longe essa experiência linguística, que marcaria a literatura brasileira. Outros gêneros artísticos emularam esse espírito. Villa-Lobos buscou referências musicais nos sons do Brasil profundo. Os pintores modernistas não romperam apenas com o formalismo acadêmico, mas buscaram cenas brasileiras.
            A renovação intelectual pela qual o país passou nos anos vinte foi efetivamente plural, porque outro modernismo, similar e antagônico ao modernismo paulista, surgiria no Nordeste, tendo como epicentro a velha e importante cidade do Recife, aglutinando autores como José Lins do Rego, Jorge de Lima e Gilberto Freyre. Se em São Paulo poetas como Mário e Oswald de Andrade lideraram um movimento atento às vanguardas europeias, no Recife, o sociólogo Gilberto Freyre trouxe dos Estados Unidos um atualizado cabedal antropológico, decisivo na leitura que fez do Brasil. A atualidade intelectual de Freyre, ambiguamente, serviu para defender a legitimidade da tradição patriarcal do Nordeste. Os modernistas de São Paulo leram o Brasil a partir de uma região emergente, de uma cidade que se insinuava como uma grande metrópole moderna. No Recife, o outro modernismo leu o Brasil a partir de uma região economicamente decadente, com declinante poder político, mas herdeira de uma vigorosa e secular tradição cultural e artística, tanto erudita quanto popular.
            Enquanto no Sudeste se desenvolveu um modernismo “brasileirista”, irreverente na linguagem e iconoclasta, o modernismo regionalista do Nordeste foi mais introspectivo, mais inclinado à tradição, de algum modo desconfiado da irreverência e do tom urbano da literatura praticada pelos paulistas. Mário de Andrade, empenhado em afirmar um brasileirismo que se pretendeu “desgeografizado”, criticou os regionalismos, caracterizando-os agressivamente como “caipirismo, saudosismo, comadrismo que não sai do beco e o que é pior: se contenta com o beco”.
            No Manifesto regionalista de 1926, liderado Gilberto Freyre, o Nordeste açucareiro aparece como o lugar geográfico e cultural sobre o qual se afirmaria um ideário regionalista, em que se percebem contrapontos aos movimentos modernistas do Sudeste, em que  a tradição aparece como vital e dotada de possibilidades criadoras, que não deveriam ser esmagadas pela modernização das formas de vida, pelas “tentações falsamente modernizantes” e pelos “empreendimentos que cheiravam a um francesismo tardio ou a um americanismo mal digerido”.
            Para além das especificidades dos dois modernismos aludidos, o Brasil daqueles anos foi marcado por notáveis transformações em todas as direções. Havia uma desbragada busca pelo Brasil, seja lá o que isso fosse. Os novos tempos pareciam exigir um novo olhar para o passado, ajustado às recentes demandas. A tônica dessas novas tendências foi a busca de um rompimento com o passado e a (re)fundação do futuro, o que significou, também, (re)fundar o passado. Podemos dizer que essas vanguardas reinventaram o cânone cultural e reorganizaram o que o crítico João Alexandre Barbosa chamou de “biblioteca imaginária”. Reorganizar e revisar o passado nacional foram perspectivas constantes entre os intelectuais daquele período, interessados em formular retratos ou imagens do país – embora não fossem os primeiros, nem os únicos. No final dos anos vinte, e de notáveis investimentos intelectuais, destacam-se Casa-Grande & Senzala (1933), de Gilberto Freyre, e Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda. Desses ensaios emergiram novos painéis interpretativos da sociedade brasileira, até hoje comentados, revisitados e saudados como marcos da inovação daquele período.
            Os tempos são outros. O Brasil é outro. O mundo definitivamente é outro. Mas quando o modernismo fizer 100 anos, bem que o país poderia recuperar não as respostas de 1922, mas a irreverência, o espírito de contestação e a vontade criadora daqueles tempos.