Entre os dias 21 e 22 de junho o Senado do Paraguai propôs, julgou e condenou o presidente Fernando Lugo por "mau desempenho das funções", num ritmo jurídico de pouco mais de 30 horas. A menos de dez meses do fim do mandato, Lugo teve 90 minutos para se defender. Encenação digna dos tempos de Alfredo Stroessner.
Trata-se de um clássico golpe constitucional, perpetrado pelo parlamento – dominado pela velha oligarquia paraguaia – que aproveitou a fragilidade política do presidente, acusando- de "negligência e inaptidão" no enfrentamento entre camponeses e policiais em Curuguaty, no último dia 15, quando morreram 17 pessoas. O placar foi de 39 votos a 4, o que demonstra que o governo perdera inteiramente a sua base de apoio parlamentar. O deputado Salym Buzarouis, do Partido Liberal Radical Autêntico, até pouco tempo atrás aliado de Lugo, negou ter havido uma ruptura da ordem democrática: “Aqui não há nenhum golpe, foi tudo 100% constitucional. Se um julgamento político [impeachment] é golpe de Estado, então os parlamentares [do Brasil] em 1992 já fizeram golpe de Estado”, disse, referindo-se ao impedimento do então presidente Fernando Collor.
A questão legal
A constituição do Paraguai de fato prevê o instrumento de interrupção do mandato, desde que haja apoio de 2/3 do Congresso. Certos analistas brasileiros – que acusam Lugo de “populista e errático”, segundo a definição de um grande jornal de São Paulo – se apressam em justificar o golpe, argumentando a legalidade da ação. Do ponto de vista do edifício democrático ocidental – uma construção de mais de 200 anos, que remonta ao “espírito das leis”, de Montesquieu – não é possível operar um julgamento político dessa natureza, senão num prazo que se mede em meses, onde não só o presidente, mas também (e sobretudo) a sociedade possa se pronunciar. Qualquer mandatário detentor de votos, em julgamento político, não pode ser condenado em rito sumário, não em respeito à pessoa do presidente, mas ao voto popular, fonte última da legitimidade políticas nas democracias modernas. Alegar a legalidade do impeachment relâmpago é um expediente retórico para justificar um processo sumário. A lei, muitas vezes, é ilegítima. Pensemos em desembargadores brasileiros, cujos salários correspondem a 3 ou 4 vezes o salário do presidente da República ou dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. Esses salários incorporam benefícios legalmente conquistados, mas certamente ilegítimos. Exemplos mais radicais também caberiam: a escravidão, até maio de 1888, era legal, afrontando os mais elementares princípios civilizatórios da época, um século depois da Revolução Francesa. Trata-se apenas de exemplos para dizer que a letra da lei eventualmente fere o “espírito da lei”. O fuzilamento político do presidente Lugo pode ter amparo constitucional, o que não é suficiente para torná-lo legítimo.
A questão política
Fernando Lugo caiu não apenas pela baixa cultura democrática da sociedade e das instituições do Paraguai, pelo caráter oligárquico do parlamento daquele país, pela fragilidade da opinião pública e dos movimentos sociais. Também contribui para sua derrocada a perda de apoio popular e a crise econômica. Em 2010, a economia, animada pelo boom do agronegócio, crescia a 15% ao ano, enquanto que em 2012, projeta-se uma retração de 1,5%. Lugo cometeu erros, como a tentativa de trazer ao governo os “colorados”. Movimento que levou ao afastamento dos liberais, que o apoiavam desde a eleição. Problemas pessoais – como a paternidade de filhos gerados quando ainda era bispo – certamente contribuíram para fragilizá-lo politicamente. Fragilidades que não autorizam o açodamento da oligarquia paraguaia, que levou a cabo um golpe constitucional, sob a benção da classe política, dos sojicultores brasiguaios, da Suprema Corte e da Igreja Católica.
Em outras palavras, Lugo caiu, também, pela correlação de forças. A democracia e a construção de sociedades mais avançadas – socialmente mais justas, institucionalmente mais elaboradas, economicamente mais dinâmicas – não se dá apenas na esfera do Estado, mas da sociedade. Dito ainda de outro modo: as diferentes vertentes progressistas precisam ganhar musculatura política para enfrentar a velha tradição “colorada” – partido que permaneceu no poder sem interrupções desde 1947 até a vitória de Lugo, em 2008. Grande parte desse longo tempo sob odiosa ditadura militar.
O “golpe legal” não se deu apesar do país estar a poucos meses da eleição, mas justamente em função dela. Dominar o aparelho estatal, no Paraguai, é fundamental para “fazer” o presidente.
É curioso observar que as forças políticas tradicionais, que perpetraram o golpe, evocam a memória da tríplice aliança, composta por Brasil, Uruguai e Argentina, na Guerra do Paraguai (1865-1870), para se defenderem das críticas que partem desses países, no âmbito do Mercosul. Manipulação histórica das mais elementares, digna da tradição colorada – um dos agrupamentos mais atrasados e obscurantistas da América Latina, que apoiaram a canhestra ditadura de Alfredo Stroessner.
Brasil
A política externa brasileira deve condenar politicamente a ilegitimidade do governo de Federico Franco, o vice-presidente eleito na chapa de Fernando Lugo – e agora o presidente da República. O Itamaraty – no âmbito da Unasul e do Mercosul, mais do que da Organização dos Estados Americanos (OEA) – deve defender a convocação de eleições gerais. Mas não deve – como não vai – apelar para o bloqueio econômico ou territorial do Paraguai, um país insular, que poderia ser facilmente asfixiado economicamente. Essa opção lembraria a arrogância norte-americana e consolidaria uma imagem imperial do Brasil. No entanto, todos os acordos de cooperação devem ser suspensos, o embaixador brasileiro, ora recolhido, não deve voltar a Assunção; Brasília não deve promover, nem receber visitas oficiais em qualquer escalão; o Paraguai não deve participar fóruns políticos na região, até que o país constitua um governo legítimo.