sábado, 3 de dezembro de 2011

Quebrando estereótipos: a pobreza no Sul do Brasil

O Sul do Brasil apresenta indicadores sociais, em geral, melhores que outras regiões brasileiras, inclusive o Sudeste, a região mais rica do país. O que não quer dizer que, nos três estados da região Sul, não haja bolsões de pobreza e de atraso. Em grandes traços, embora mitigados, a região apresenta padrões de desenvolvimento e de exclusão próprios da formação do capitalismo brasileiro. As reportagens abaixo, publicadas no Valor Econômico (01/12/2011) são uma leitura um tanto técnica, mas proveitosa para pensar o Brasil, proposta deste blog.
No Sul, 716 mil vivem com até R$ 70 por mês
Por Júlia Pitthan, Sergio Bueno e Marli Lima | De Anita Garibaldi (SC), Porto Alegre e Doutor Ulysses (PR)
Valor Econômico, 01/12/2011

Apesar de ostentar bons índices de desenvolvimento, o Sul do Brasil ainda abriga 716 mil cidadãos vivendo em condições de extrema pobreza. O número representa 2,6% da população na região. No país, o número de pessoas que vivem nessas condições corresponde a 8,5% da população.
São famílias que enfrentam o mês com até R$ 70 por pessoa, moram em condições precárias, trabalham informalmente e têm pouco acesso a serviços como saneamento básico. No Sul, cerca de 61% delas estão concentradas em regiões urbanas, mas as áreas rurais mais pobres, com agricultura de subsistência, também reúnem famílias cujo sustento depende dos programas de transferência de renda do governo federal.
Lançado em outubro, em Porto Alegre, com a presença da presidente Dilma Rousseff, o programa Brasil Sem Miséria quer ampliar a cobertura dos programas assistenciais, como o Bolsa Família, na região. Hoje, 81,52% das famílias da região, que estão incluídas no Cadastro Único do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), recebem o benefício. Segundo a secretária para Superação da Extrema Pobreza, Ana Fonseca, a média nacional chega a 96%. De acordo com ela, o objetivo é realizar, junto com governos estaduais e prefeituras, uma busca das faSegundo Ana, a região representa 4% dos extremamente pobres do país. Nos três Estados, o trabalho será ampliar a inclusão de famílias no Cadastro Único, banco de dados que reúne informações para a distribuição dos recursos do programa. Segundo a secretária, a meta é ampliar a cobertura dos programas até 100%.
Entre os três Estados da região, o Paraná é o que tem o maior percentual de pessoas em situação de pobreza extrema - 2,9% da população de 10,4 milhões de habitantes segundo o ministério. No Rio Grande do Sul, 306,6 mil pessoas vivem em situação de extrema pobreza, número que equivale a quase 90 mil famílias e 2,8% da população. Em Santa Catarina, a pobreza extrema atinge 1,6% da população - cerca de 102 mil pessoas que vivem com até R$ 70 por mês.
No Rio Grande do Sul, a meta do governo estadual é garantir o acesso de um terço do contingente de extremamente pobres para o programa Brasil Sem Miséria nos próximos quatro anos, mediante inclusão no cadastro único de benefícios sociais do governo federal. O governo gaúcho ainda não sabe quantas dessas pessoas estão fora do cadastro, que inclui 845,8 mil famílias no Estado. O ministério estima, porém, que o número de famílias pobres que poderiam ser cadastradas no Rio Grande do Sul chegue a quase 1,1 milhão. Dessas, 542,1 mil (com renda per capita de até R$ 140 e filhos com até 17 anos de idade) poderiam receber a Bolsa Família, mas apenas 444,4 mil têm acesso ao benefício.
O Rio Grande do Sul tem ainda um programa próprio, denominado RS Mais Igual, que complementa em R$ 50 por família os recursos concedidos pelo governo federal por meio do Bolsa Família. Os pagamentos devem começar em dezembro e a meta é beneficiar as cerca de 90 mil famílias nos próximos quatro anos. "A tendência é focar nos bolsões de miséria, porque 65% das pessoas em extrema pobreza estão em áreas urbanas", disse o chefe da Casa Civil do governo gaúcho, Carlos Pestana, que coordena a operação do Brasil Sem Miséria no Estado.
Segundo o secretário de Assistência Social de Santa Catarina, Serafin Venzon, o Estado tem o menor percentual de pobreza extrema do Brasil, mas há a intenção de ampliar a cobertura dos programas de transferência de renda no Estado.
No Bolsa Família, há 361.579 famílias cadastradas em Santa Catarina, mas apenas 139.902 recebem o benefício. Segundo Venzon, o Estado é o que tem a menor cobertura de famílias atendidas pelo programa. A presença da população extremamente pobre no meio rural é uma característica catarinense, que tem 42% das pessoas nessa condição fora das áreas urbanas. Além do Bolsa Família, o Estado mantém programas voltados para idosos e deficientes sem renda fixa suficiente para subsistência, que já atendem 77 mil pessoas.

Vila Senhor do Bonfim é um típico bolsão de miséria

Uma visita à vila Senhor do Bonfim, na zona norte de Porto Alegre, revela uma pequena, mas contundente amostra do que o Programa Brasil Sem Miséria terá de enfrentar na região. A menos de dois quilômetros da sede da Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (Fiergs), o local é um típico bolsão de miséria, com quase 1,3 mil famílias sobrevivendo em condições de extrema precariedade.
Ao lado de vielas estreitas de chão batido, casebres minúsculos sequer conseguem abrigar do frio e da chuva milhares de pessoas submetidas a extrema pobreza. Água encanada existe, mas muitos barracos ainda foram construídos embaixo de uma linha de transmissão de energia, aumentando o já elevado risco de acidentes provocado pelas várias ligações irregulares na rede de baixa tensão.
Boa parte da população local não tem emprego formal e depende de "bicos" para viver, enquanto alguns acabam recorrendo ao tráfico de drogas e contribuem para aumentar a insegurança e a violência na vila. A escolaridade em geral é muito baixa, na faixa do ensino básico, e mesmo quem tem trabalho fixo raramente recebe mais do que R$ 600 por mês, estima a presidente da associação de moradores, Helena Cristina Borges.
Apesar disso, Helena calcula que só 90 famílias locais estão incluídas no cadastro único do Ministério do Desenvolvimento Social. Dessas, não mais do que duas dezenas recebem o Bolsa Família. A Fundação de Assistência Social da prefeitura (Fasc), que faz o cadastramento, não dispõe de dados específicos sobre a vila, apenas sobre o bairro onde ela está inserida, o Sarandi, que tem 2,2 mil famílias atendidas pelo bolsa.
Mãe de uma menina de dois anos e de um menino de quatro, Ana Paula dos Santos está há dois anos no cadastro à espera do benefício. Abandonada pelo marido, ela depende da ajuda da mãe para alimentar os filhos e a si própria e vive em um casebre de dois cômodos com as paredes ainda escurecidas pela fuligem produzida por um incêndio, oito meses atrás.
Ana Paula também não tem dinheiro para colocar os filhos na única creche da vila - que é privada- e sair em busca de emprego. E mesmo que tivesse, a baixa qualificação seria outro entrave. Aos 19 anos, a jovem ainda não concluiu a oitava série do ensino básico.
A poucos metros dali, Cristiane Teixeira, de 32 anos, começou a receber em agosto R$ 64 do Bolsa Família referentes a dois dos seus três filhos, com 3 e 11 anos de idade. Outra filha mora com a avó materna, porque não há mais espaço para ela no casebre que abriga a família, com dois cômodos e piso de cimento esburacado pelos frequentes alagamentos.
Cristiane é casada, mas o marido não tem renda fixa - faz apenas trabalhos eventuais na construção civil. Enquanto isso, mal acomodada em uma cadeira de plástico com encosto quebrado, ela confecciona peças de artesanato para vender na vizinhança. Procurar emprego também é difícil, porque além de não ter com quem deixar os dois filhos pequenos, ela concluiu apenas o ensino básico.
Segundo Helena, a Senhor do Bonfim é resultado da invasão, há 17 anos, de um loteamento do Instituto de Previdência do Estado (IPE). Até hoje os moradores esperam pela regularização fundiária da vila. Com a regularização, a prefeitura poderá organizar os lotes dos moradores e fazer melhorias, como calçamento das ruas e construção de rede de esgoto, praça, creche, posto de saúde e, se depender do desejo da população, de uma cozinha comunitária.
Atualmente, diz Helena, o único serviço público dentro da vila é uma escola estadual de primeiro grau com cerca de mil alunos, enquanto o número de crianças no local passa de 3 mil. (SRB)

Em Doutor Ulysses, não há agência bancária e hospital

Lindamir Carvalho e Eloir Leal, ambos analfabetos, moram com os seis filhos menores de idade em uma casa de três cômodos, à beira de um barranco na estrada que leva a Doutor Ulysses, um dos municípios mais pobres do Paraná. Dos seus 6 mil moradores, 49,9% são considerados pobres. A casa da família foi construída com madeira usada, doada por um vereador. "Fazemos nossa precisão ali no mato e tomamos banho em um cano que vem com água de poço", conta Lindamir, sobre a falta de banheiro.
A família não tem energia elétrica, televisão e geladeira, e usa fogão a lenha para cozinhar. Dias atrás, o casal estava com as crianças, colhendo laranja em uma área próxima, e recebeu advertência de representantes do Ministério do Trabalho. "Me colocaram para estudar o dia inteiro", reclama a filha mais velha, 14 anos. Os dois plantam feijão, milho e arroz no terreno no fundo da casa, para consumo próprio, e recebem R$ 230 do Bolsa Família. "Passamos apertado. Falta comida salgada. Vivemos na miséria", diz Lindamir, que tem 29 anos e está com depressão.
Doutor Ulysses fica a 130 quilômetros da capital. Para chegar lá, é preciso andar 50 quilômetros em estrada de pista simples, cheia de curvas e sem acostamento. Depois, atravessar o rio Ribeira com balsa, porque a ponte caiu em agosto (outra está em construção) e continuar mais 50 quilômetros em estrada de terra. "Nossa maior dificuldade é de acesso", afirma o prefeito, Josiel dos Santos, operador de máquinas eleito no ano passado, depois da cassação do prefeito anterior, por compra de votos.
Doutor Ulysses é uma das cinco cidades do Paraná ainda sem acesso por estrada asfaltada. Não tem hospital e, todo dia, um ônibus com 22 pacientes sai às 3 horas da madrugada para chegar às 7 horas em Curitiba. Nem parto é feito lá. O cartório só funciona uma vez por semana. Não há agência bancária, apenas um caixa eletrônico.
Desde o começo do ano, começou a funcionar na cidade uma lotérica, onde é pago o Bolsa Família. A folha de pagamento do benefício somou R$ 107 mil em setembro e beneficiou 867 famílias. "Não concordo com esses dados sobre pobreza. Há gente que ganha mais e não declara por medo de perder o dinheiro do governo", diz o prefeito, que reclama da inadimplência de 50% no pagamento de IPTU.
A palavra miséria não é bem aceita. "Aqui tem miséria, não miserável", diz o prefeito. "Não gosto da palavra, porque machuca a pessoa, é humilhante." Edineia e Valdecir de Almeida não trabalham e vivem com cinco filhos em quatro peças. Eles dizem que são doentes e, para economizar na conta de luz, lavam roupa e tomam banho no rio que passa no fundo do quintal. "Somos pobres. Miserável fica ruim", diz ela. O casal recebe R$ 204 do Bolsa Família e três filhos almoçam em um projeto da prefeitura, onde 82 crianças podem fazer teatro, dança, esportes, artesanato, fora do horário de aula.
Outra que depende de ajuda do governo é Marli de Jesus da Silva, mãe de 11 filhos e sem marido. Seis moram com ela em uma área rural. O mais velho, Ademar, de 17 anos, diz que tem problemas de saúde e reclama da situação. "Aqui vivemos mais do que na miséria. Às vezes deixamos de comer para dar para os pequenos", conta. Cinco crianças estudam e almoçam na cidade. "No feriado, não sei o que faço", diz Marli, sobre os dias em que os filhos fazem refeições em casa.
Se depender da vontade das crianças, contudo, os dias de estudo estão contados. "Queria trabalhar", reclama um dos meninos, de 14 anos. "Sei roçar, carpir", responde, ao ser questionado sobre o que poderia fazer. O garoto diz que já está acostumado a comer sem carne e que não precisa mais estudar. "Sei ler e escrever." (ML)

Anita Garibaldi tem 13% das famílias na pobreza extrema

Casas simples de madeira, galinhas e porcos no pátio e o plantio de pequenas áreas de milho e feijão são a realidade da maioria dos beneficiários do Bolsa Família em Santa Catarina. Apesar de haver grande concentração de pessoas extremamente pobres nas grandes cidades do Estado - em Joinville, município mais populoso, com 510 mil habitantes, 14.249 pessoas estão no Cadastro Único do Ministério do Desenvolvimento Social -, as pequenas cidades com vocação agrícola reúnem a maior proporção de famílias que enfrentam o mês com até R$ 70 por pessoa.
Em Anita Garibaldi, no Planalto Serrano catarinense, cerca de 13% das famílias da cidade, com população de 8,2 mil pessoas, estão na faixa da pobreza extrema. O município tem a melhor cobertura do programa em Santa Catarina - das 1.280 pessoas no Cadastro Único, em condições de receber o benefício, 811 recebem os recursos. A cidade fica ao lado de Cerro Negro, que tem 18,9% da população em situação de pobreza extrema - maior percentual do Estado.
O secretário de Desenvolvimento Social de Anita Garibaldi, Itamar Leonel dos Passos, diz que o maior problema da região é a instabilidade de renda com a atividade agrícola. "As famílias não têm renda fixa, porque dependem do resultado do que colhem em pequenas propriedades. Além disso, há uma mentalidade muito individualista. As tentativas de montar uma cooperativa de produção nunca deram certo", explica.
Violência não é um problema na região. Todos se orgulham de poder deixar portas abertas, sem perigo de assaltos. "É uma cidade muito pequena, todo mundo se conhece", diz Passos. A falta de oportunidade de emprego formal é o maior empecilho para o desenvolvimento da região. Em Anita Garibaldi, o maior empregador é uma fábrica de cortinas, com cerca de 200 funcionários. Um concurso público da prefeitura, no início de novembro, era a principal aposta dos jovens da cidade que estavam na fase final do ensino médio.
A comunidade de Marmeleiro retrata bem a situação das famílias que dependem do benefício para viver. A região fica a cerca de 20 km do centro da cidade e o acesso é feito por uma sinuosa estrada de terra. A professora Geci Antunes Correa, 20 anos de magistério, leciona na escola que atende às crianças inscritas no programa e foi a principal responsável por avisar as famílias sobre a possibilidade de receber o benefício.
Com o Bolsa Família, eles passaram a receber R$ 134 fixos, usados para comprar comida e manter a casa, que é abastecida com energia elétrica, assim como as demais na comunidade. A dona de casa, que é gaúcha, diz que tem vontade de levar a família de volta para o Rio Grande do Sul, mas, como em Anita Garibaldi não pagam aluguel, a família acaba ficando.
Gaita dos Santos, 49 anos, é vizinha de Adriana no Marmeleiro. Ela vive com o marido e dois filhos em uma casa de madeira no alto de uma colina. No pátio, eles criam porcos e galinhas. "A gente tem para comer. Se a gente se aperta, a gente vende também", explica.
O marido de Gaita planta milho e feijão. O filho mais novo, Bruno, 11 anos, frequenta a quinta série, o que garante que a família receba o Bolsa Família. Como outros jovens do local, ele não tem perspectiva de deixar o Marmeleiro. Quer crescer e ajudar o pai na lavoura, ficar perto da mãe e da família. (JP)

Um comentário:

  1. Além da objetividade dos dados estatísticos, impressiona-me a simbologia dos nomes dos lugares: Vila Senhor do Bonfim, Doutor Ulysses, Anita Garibaldi... Paradoxos deste nosso Brasil, que precisam ser vistos e analisados. Que venham novos posts como este, ultrapassando a leitura dicotômica ou fundada em estereótipos. Ótimo!

    ResponderExcluir