segunda-feira, 28 de novembro de 2011

A classe média e os valores (conservadores)

Alberto Luiz Schneider
Artigo originalmente publicado na Revista Real. Junho 2011

A classe média é um fenômeno essencialmente moderno, que nasceu no Ocidente, associado à expansão capitalista que caracteriza a modernidade. Antes da Revolução Industrial, no século XIX, a pequena franja social que vivia entre a nobreza e os camponeses (na Europa), ou entre os grandes proprietários de terra e os escravos (no Brasil), era conhecida como burguesia, pois vivia em burgos ou vilas e exercia atividades manuais: sapateiros, ferreiros, moleiros e o pequeno comércio. A partir das revoluções Francesa (1789) e Industrial, uma parte desses burgueses enriqueceram, tornando-se a nova classe hegemônica. No entanto, cada vez mais pessoas de origem pobre ascenderam socialmente, engrossando a chamada classe média. A partir da Segunda Guerra Mundial, a classe média se expandiu poderosamente nos países ditos desenvolvidos.
Se hoje, no Brasil, se fala sobre o tema é porque começam a se enraizar na vida brasileira os traços essenciais da modernidade, que conjuga capitalismo e democracia, gerando crescentemente classes intermediárias, que se caracterizam pela obtenção de certa renda, pelo acesso à educação técnica e intelectual e pela partilha de certos valores, identificados com a moral do trabalho, a crença no mérito, o ressentimento (e ou submissão) em relação aos ricos e, muitas vezes, o desprezo pelos pobres, vistos como indolentes ou apenas "deseducados". É o que se chama de valores burgueses, encampados pela classe média tradicional, de um modo até mais radical, ou ao menos mais caricatural, dos próprios grandes potentados enriquecidos pela dinâmica capitalista.
A classe média tem no empreendedorismo (empresarial, técnico, intelectual) uma de suas virtudes mais reconhecidas. Por isso mesmo, tende a ver nos "outros", que ficaram para trás na escala social, incapacidade empreendora, vícios perdulários ou, mais generosamente, "despreparo". Daí a ênfase que as pessoas que assumem os valores da classe média dão à educação, pois veem nela um instrumento para gerar o "mérito" e fazer desses "outros" pessoas melhores – leia-se, de classe média.
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O imenso contingente populacional que acaba de sair da pobreza nos últimos anos é de classe média? Sim e não. Por lado sim, porque já vive em condições de consumo e de renda que o diferencia dos realmente pobres. Por outro lado não, pois essas pessoas ainda não tiveram condições para dispor de tempo livre, educação e certos refinamentos que caracterizam a classe média tradicional. Por isso, a "nova classe média" é vítima do preconceito da "velha classe média", que tende a ver os "emergentes" como pobres que tem algum dinheiro, mas continuam vulgares como os pobres. Seriam pobres de espírito. Na língua viva e vibrante das ruas se encontram palavras que parecem se adequar ao modo como uns veem os outros. "Farofeiro", por exemplo. Ninguém se define como tal, a não ser ironicamente. Farofeiro é termo pejorativo para descrever o comportamento dos outros, convencidos que seus próprios hábitos e circunstâncias os colocam em posição superior.
O que faz uma pessoa ser de classe média, portanto, não é apenas a renda, mas os signos e a manipulação dos bens simbólicos. As pessoas que compõem a "nova classe média" não possuem os privilégios de nascimento da classe média tradicional, como o tempo livre, condição essencial para a apropriação de conhecimentos - tecnicamente úteis ou socialmente valorizados – que permitem a formação de um determinado capital cultural. Os realmente ricos detém o capital econômico, já a classe média tradicional detém capital cultural, utilizada como um signo de distinção. É por isso que a velha classe média se empenha tanto em falar o português corretamente (mas com muitas palavras em inglês entremeadas à fala). É um meio de ostentar "cultura" e "conhecimento", de afetar distinção e demarcar barreiras.
As pessoas da classe média brasileira tradicional – brancas, de formação universitária, em geral de origem imigrante, ou descendentes de fragmentos empobrecidos das classes senhoriais – tendem a ser economicamente dinâmicas (pois são empreendedoras e detém conhecimentos técnicos), mas politicamente conservadoras (pois se identificam com a ordem e os bons costumes). Tendem também a ser socialmente irresponsáveis (daí certa hostilidade em relação a políticas públicas, como o bolsa-família, na crença equivocada de que isso faria os pobres se acomodarem e não serem, como eles próprios, empreendedores).
A irresponsabilidade social da classe média é contrária aos seus interesses concretos, pois a inclusão social favorece o dinamismo capitalista e o empreendedorismo, mas enfraquece o exclusivismo social que as "classes burguesas" (médias) tanto prezam. Não é de se estranhar que os grandes empresários vejam a ascensão social de milhões como uma oportunidade econômica tangível, já a classe média tradicional vê o mesmo fenômeno como uma ameaça, o que explica seu comportamento político conservador.
Eis o paradoxo brasileiro. Ou a classe média emergente cria uma nova sensibilidade, mais moderna e mais civilizada que a dos valores da velha classe média, formada sob os escombros de uma sociedade escravista (racista e classista), ou adere a ela, reproduzindo o atraso tipicamente latino-americano. A direção política que os emergentes vão seguir é uma incógnita que os próximos dez anos vão elucidar. Se aderirem aos valores da velha classe haverá uma reversão do espírito de inclusão que se verifica na sociedade brasileira pós-ditadura. Ditadura que teve forte apoio da classe média, exceto em seus anos finais, de crise e decadência.
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Em certo sentido, ser de classe média é partilhar de um estado de espírito. É um modo de ler a vida, é uma pose, um gesto. Pode haver ricos de "classe média" e até pobres de "classe média". Ser de classe média é exibir certos valores, como o culto ao mérito, o gosto pela "cultura" – uma profundíssima preocupação com o "gosto dos outros, e, sobretudo, com a opinião dos outros. A velha classe tem paixão por citar endereços estrangeiros. Se a pessoa tiver certa pretensão cultural, vai citar Paris. Se tiver gosto pelas compras, tenderá a falar em Nova Iorque.
As pessoas imbuídas desse espírito de classe têm particular gosto em afetar honestidade (mesmo que não assinem a carteira da empregada, soneguem imposto de renda ou subornem policiais etc.), pois isso demonstraria a superioridade moral. O culto aos valores, invariavelmente associado à honestidade (e nunca ao humanismo progressista), tem a mesma função simbólica de quando se exibem fotos de viagem: exibir distinção. A classe média, sem o poder do dinheiro grosso dos mais abastados, nem as necessidades mais urgentes dos mais pobres, tem tempo e condições concretas para afetar dignidade, honestidade, moralidade, pudor e cultura. Por isso, se uma moça muito jovem e muito rica (ou muito pobre) engravidar indesejadamente, e quiser ter o bebê, isso não será uma tragédia social e familiar, embora seja visto como um problema, evidentemente. Mas para a classe média isso é um desastre de proporções colossais, pois ataca seu bem maior: os "valores".

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