segunda-feira, 28 de novembro de 2011

O que temos a comemorar e o que ainda para conquistar

Alberto Luiz Schneider
Artigo originalmente publicado na Revista Real. Agosto 2010
A maior novidade no tempo brasileiro não é o reconhecimento de que o país passa por transformações. Todas as sociedades mudam, sempre. O Brasil se caracterizou ao longo do século XX como uma das mais desiguais nações do mundo, com minorias abastadas e massas deserdadas. As brutais transformações pelas quais o país passou – a urbanização, a industrialização, a fundação de uma rede de universidades, etc – não foram capazes de alterar a crônica desigualdade que marcou nossa formação nacional.
Se em algum momento do século XX a base da pirâmide social afundasse no Atlântico, o capitalismo brasileiro não sofreria maiores arranhões. As indústrias de automóvel, de iogurte ou de eletrodomésticos continuariam a vender mais ou menos o mesmo que vendiam. Os jornais continuariam a vender o mesmo número de exemplares e as editoras não perderiam faturamento. Em outras palavras, uma parte do país não figurava na planilha do Brasil supostamente moderno, tornando a modernidade brasileira esquizofrênica.
Se os próximos anos, no entanto, confirmarem o crescimento econômico com distribuição de renda, somado à vigorosa expansão do consumo e da oferta de serviços públicos e direitos concretos às maiorias, garantindo um crescimento sustentado da nova classe média, então estaremos diante de outro país, cujas implicações vão afetar a vida política, cultural e econômica.
Intelectuais, publicitários, artistas, políticos, empresários, sindicalistas, todos terão de rever conceitos e práticas a fim de compreender e manejar esse novo país que pode estar surgindo. Esse autêntico movimento das placas tectônicas sobre as quais se assenta a sociedade brasileira implicará não apenas mudanças, mas, como vimos argumentando, significará uma mudança de sentido histórico, capaz de desfigurar o Brasil tradicional, reiventando o país.
Herança de desigualdade
Para que se compreenda o alcance das transformações pelas quais o país passa neste início do século XXI é preciso retornar ao século XIX, o tempo em que o Brasil foi configurado como um país independente e partícipe do concerto das nações modernas, limitando-se a atualizar a tradição herdada dos tempos coloniais.
O Brasil é um país erigido sobre a escravidão: a mais radical forma de desigualdade construída pelo engenho humano. O Brasil foi o último país do Ocidente a abolir a nefanda instituição. E quando finalmente o fez, negou aos novos cidadãos (sic) o que já negava a todos os pobres: acesso à terra, à educação e ao trabalho remunerado. Não é preciso grande esforço intelectual para compreender que a origem da pobreza extrema, das favelas e da desigualdade crônica repousa na "natureza" de nossa formação social.
Ao longo do século XX o país foi evidentemente mudando, mas sem jamais alterar de modo significativo o sentido de nossa formação histórica. A era Vargas introduziu diretos trabalhistas para os trabalhadores formais e urbanos (mas a maioria da população estava no campo). Também instituiu o voto às mulheres (mas durante boa parte daquele período o país era uma ditadura). Vargas também lançou as bases para o desenvolvimento industrial (mas foi derrubado, em parte, por isso). Não se trata de minimizar as conquistas daquele tempo, importantes, mas insuficientes para romper com o pesadíssimo fardo do passado.
O regime militar foi capaz de gerar um gigantesco crescimento econômico, éramos a China dos anos 1970, mas a desigualdade social se agravou severamente. Mudávamos, mas mantínhamos o sentido histórico da formação brasileira. Terminado o regime de exceção – uma ditadura obscurantista, mas capaz de gerar alguns acertos econômicos, o que em parte explica a adesão da classe média – o Brasil era uma "Belíndia", na expressão consagrada pelo economista Edmar Bacha. Ilhas de riqueza belga em meio a oceano de pobreza indiana
As placas tectônicas se movem
Estudo divulgado pelo economista Marcelo Neri, do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas, demonstrou que a situação social brasileira tem se alterado notavelmente. De acordo com a pesquisa, a proporção de miseráveis nas maiores regiões metropolitanas do país caiu de 35% para 25% de abril de 2002 a abril de 2008. No mesmo período, a classe média aumentou de 44% da população para 52%.
O IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – também divulgou uma nova rodada de dados, indicando a continuidade da queda da pobreza no ano passado. Esta tendência foi iniciada em 2004 com a recuperação da economia do país. De acordo com a metodologia adotada pelo IPEA, os pobres passaram de 27,1% da população das seis principais regiões metropolitanas em 2006 para 25,2% em 2008. Em 2003 eram 35% da população brasileira.
O IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – apresentou em junho de 2010 uma nova pesquisa, que parece não apenas confirmar, como aprofundar os indicadores disponíveis. A Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) de 2008 a 2009 foi realizada em 60 mil domicílios urbanos e rurais, de Norte a Sul do país. De acordo com os dados dessa pesquisa, argumenta Marcelo Neri, os muito pobres somariam 19,9 milhões de brasileiros e não 30,5 milhões, como sugerem os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), de 2008.
De todos esses dados, o mais significativo é a redução da desigualdade. Sob esse aspecto, uma informação contida na POF é preciosa. Para o período correspondente à pesquisa, a renda dos 10% mais pobres subiu 42,1%, ao passo que a renda dos 10% mais ricos elevou-se em 13,3%. Entre as duas últimas POFs (a anterior é de 2002/2003), a proporção de pessoas pobres caiu de 18% para 10%.
As razões concretas que têm permitido a alteração da situação em relação à pobreza e à crônica desigualdade social passam por um conjunto de explicações. Não se pode negar o efeito benéfico da redução drástica da inflação e do descontrole das contas públicas. No entanto, a partir de 2004, a conjugação de crescimento econômico, política sistemática de aumento do salário mínimo e um ambicioso programa de transferência de renda (Bolsa Família) e a aposentadoria rural (conquista da Constituição de 1988) permitiram um ciclo virtuoso de crescimento e distribuição de renda. O salário mínimo saltou 112% em termos nominais nos últimos oito anos e o Bolsa Família ampliou sua cobertura a 12,6 milhões de famílias.
Para não se ufanar
Se há razões para confiança, no entanto, cabem ressalvas. Poderia uma família de cinco ou seis pessoas, que ganha R$ 1.100 – de "classe média", portanto - atender todas as necessidades básicas, incluindo educação de qualidade, e ainda gastar cinco ou 10% do orçamento doméstico em lazer? Provavelmente não. Outro fator importante: a pesquisa capta apenas os ganhos do trabalho (típicos dos mais pobres), mas não capta os ganhos do capital (típico dos mais ricos), como os juros que o governo paga a quem tem dinheiro investido no mercado financeiro. Talvez o fosso social que separa os mais pobres dos mais ricos pode não estar diminuindo tanto quanto indicam as pesquisas, embora a vida dos mais pobres esteja melhorando inequivocamente.
 

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