quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Língua Portuguesa: a mestiça e vibrante filha do latim

Publicado originalmente na Revista História Viva, n. 70
Alberto Luiz Schneider

Um dia, o idioma de Luís de Camões, com seu exótico terminativo “ão”, saiu de um pequeno pedaço da Península Ibérica e se esparramou pelo mundo, inclusive por metade da América do Sul. Cumpria assim uma pequena etapa de uma peripécia atlântica que, até aqui, já envolveu aproximadamente 230 milhões de pessoas espalhadas por quatro continentes: Portugal, Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor Leste.  
A última flor do Lácio, como graciosamente Olavo Bilac referiu-se à língua, é uma espécie de documento vivo, vibrante e mestiço da história humana. Seu percurso começa no Império Romano, passando depois pela Universidade de Coimbra, pelas grandes navegações e pela aventura moderna que conectou Europa, América e África.
O português é uma das línguas neolatinas, como o italiano, o espanhol, o romeno e o francês – as filhas orgulhosas do velho latim. Como língua viva, o latim falado no Império Romano extinguiu-se em torno dos anos 500 a 600 dc. Findo o Império, porém, as populações que o falavam ativamente não adotaram nenhum outro idioma.
Assim, o latim assumiu outras feições, modificando-se de modo autônomo em cada uma das províncias européias de Roma, dando à luz dialetos muito próximos da língua-mãe. Na Lusitânia brotou o galaico-português. Na Hispânia, o castelhano, entre outros idiomas ibéricos. Na Gália, o francês e ainda outras línguas, como provençal. Várias formas de italianos surgiram na Península itálica.
O português descende do latim falado nos primeiros séculos depois de Cristo por soldados, camponeses e comerciantes. Eles usavam uma língua dita vulgar, já consideravelmente diferente do latim literário empregado por Cícero ou Virgilio. Ironicamente, esse latim clássico, do Império Romano pagão, sobreviveria durante toda a Idade Média na Europa Ocidental como a língua oficial da Igreja cristã, a dar unidade lingüística e cultural para todo o continente. Esse latim eclesiástico também teve sua própria dicção
O movimento histórico do idioma nesse período foi curioso e algo contraditório: enquanto um latim vulgar declinava junto com o Império que o expandiu, um outro, o culto, ascendia como a língua eclesiástica, pouco a pouco superando o grego, em que foi escrito o Novo Testamento.
A língua adotada pela Igreja também viria a influenciar a consolidação dos modernos idiomas neolatinos, emprestando palavras e expressões eruditas a escritores e pensadores a partir dos séculos XIV, XV e XVI. Já havia, então, Dante Alighieri escrevendo em italiano. Luís de Camões em português. Miguel de Cervantes, em castelhano. Michel de Montaigne, em francês.
Nesse momento histórico, a Renascença, apesar de todo o culto à antiguidade clássica, foi um verdadeiro viveiro de línguas, selando o destino do latim que – como estrela morta – continuou a brilhar na noite dos tempos através das suas filhas, as línguas neolatinas.
A língua do povo
Em torno do ano 1000, o galaico-português – falado no norte de Portugal e na Galícia – começou a se expandir ao sul e, lentamente, a se dividir, embora ainda hoje o galego e o português sejam muito próximos. O idioma do Condado Portucalense, mais tarde Reino de Portugal, recebeu influência do árabe por meio das populações muçulmanas que habitavam o sul da Península Ibérica, gradativamente expulsas pelos cristãos.
Os primeiros apontamentos oficiais em português remontam ao século XII. Nessa época, os documentos tendiam a ser escritos no latim culto dos padres, e não na língua das pessoas comuns. No entanto, em 1279, o rei D. Diniz, também poeta, proclamou justamente a língua das pessoas comuns como a oficial.
Em 1290 foi criada a Universidade de Lisboa (em 1308 transferida para Coimbra) com a missão de organizar, defender e difundir o idioma do reino de Portugal, sempre temeroso e vigilante quanto ao poder dos vizinhos castelhanos. A primeira gramática em português surgiu em 1536, assinada por Fernão de Oliveira, e a segunda, em 1540, por João de Barros.
Como se vê pelas datas, quando Pedro Álvares Cabral aportou em terras brasileiras o português era muito jovem, experimentando sua própria formação num país com uma população que mal chegava ao milhão de habitantes, concentrados numa pequena faixa de terra litorânea. Parece inacreditável que esse povo tenha sido capaz, nos séculos XV e XVI, de exportar sua língua singrando os mares, circundando a África e chegando às Índias e ao Japão antes de todos os outros europeus.
Foi com a colonização da imensa costa atlântica do Brasil que o português deitou raízes em solo americano, alcançando uma vastidão impressionante. Nem o mais otimista dos lusitanos do século XVI sonharia que metade da América do Sul viesse a falar a sua língua, concentrando no lado de baixo do equador a imensa maioria de seus falantes.
Múltipla e mestiça
A partir de 1500, Portugal remeteu ao Brasil tudo o que ele mesmo era. Transplantou-se ao Novo Mundo. Transfigurou-se nos trópicos. A língua portuguesa que chegou ao Brasil era tão múltipla e plural quanto as próprias pessoas que a falavam.
O falar dos primeiros colonizadores de Olinda ou São Vicente era bem diferente do de D. João VI e dos lisboetas que aportaram com a Corte no Rio de Janeiro em 1808. Que, por sua vez, era distinto do linguajar do milhão e meio de imigrantes portugueses – pobres e iletrados em sua maioria – que chegaram aos portos brasileiros entre 1880 e 1920, vindos do Algarve, Trás-os-Montes, Minho e Ilha da Madeira, praticando formas singulares de comunicação oral.
Durante todo o violento processo colonizatório a língua portuguesa teve de enfrentar outras: a espanhola no sul, a holandesa em Pernambuco, a francesa no Rio de Janeiro e no Maranhão. E por todo o território brasileiro travou ainda renhida guerra contra o tupi-guarani, além de outras 350 falas ameríndias.
Em torno do ano de 1700, em São Paulo, a maioria das pessoas falava a língua geral, ou seja, um tupi-guarani, já mesclado com português, codificado pelos padres jesuítas para catequizar os índios. Essa língua deixou sua marca no vocabulário e no modo como certas palavras são pronunciadas (ver reportagem sobre a língua geral na edição 64). O português, assim, tornou-se ainda mais mestiço – um pouco índio, um pouco caboclo.
Em 1757 o rei de Portugal D. José I, sob inspiração do Marques de Pombal, proibiu a língua geral em benefício do idioma da metrópole. A rigor, como observou o linguista e dicionarista Antonio Houaiss, o português do Brasil só se fez forte nos séculos XVIII e XIX, quando, do ponto de vista do idioma, houve renovadas vitórias do colonizador sobre o colonizado.
O português prevaleceu. O brasileiro lê Fernando Pessoa ou José Saramago sem dicionário e com a mesma intimidade emocional com que se deleita com as páginas escritas por Machado de Assis ou Guimarães Rosa. Mas a existência da língua é um documento histórico, que traz dentro de si o registro de venturas e desventuras do passado.
O português venceu, sim, mas a história o tributou: no Brasil, deixou-se atravessar por palavras indígenas, como jururu e cuia; africanas, como bunda e cafuné; francesas, como paletó e matinê; inglesas, como trem e futebol; italianas, como soneto e carnaval; espanholas, como bolero e chimarrão; alemãs, como blitz e cuca; japonesas, como quimono e tatame.
A língua acolheu ainda muitas outras influências, que expressam as muitas humanidades que nos constituíram. Abrasileirou-se não apenas no vocabulário, mas no modo de dizer, na sintaxe e na musicalidade. O português, disse Antonio Candido, “transladado ao Sul da América, não perdeu o caráter grave, nem a têmpora máscula, nem o tom de funda melancolia que lhe imprimiu a esforçada e trágica aventura de nossos avós; e ainda adquiriu preciosos elementos de encantadora suavidade, de frouxa, dolente e maviosa ternura”.
Cronologia
1279
O rei D. Dinis decreta que a chamada "língua vulgar", um latim modificado, passe a ser a língua oficial de Portugal.
1290
É criada a Universidade de Lisboa
1308
A universidade de Lisboa é transferida para Coimbra
1500
Descoberta do Brasil. Ao longo do século XVI, colonização portuguesa em várias partes da África
1536
Publicação em Lisboa da primeira gramática da língua portuguesa, de Fernão de Oliveira
1540
Publicação da segunda gramática, de João de Barros
1572
Publicação de Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões
1712-1721
Publicação, em oito volumes, do primeiro dicionário português-latim, o #Vocabulario portuguez e latino#, do religioso francês radicado em Portugal Rafael Bluteau
1750
Criação da Real Academia das Ciências de Lisboa
1757
O marquês de Pombal institui a Lei do Diretório dos Índios, que proíbe no Brasil o uso da língua geral, na Amazônia chamada de nheengatu (que misturava o português às línguas indígenas)
1789
Primeira edição em Portugal do #Dicionário da língua portuguesa#, de Antonio de Morais Silva, reeditado em 1813, 1831, 1844, 1858, 1877 e 1889
1844
Publicação do primeiro romance brasileiro, #A moreninha#, de Joaquim Manuel de Macedo
1883
Primeira descrição do sistema fonético do português de Portugal, feito pelo filólogo Aniceto dos Reis Gonçalves Viana
1904
 Gonçalves Viana publica em Lisboa #Ortografia nacional#, obra que simplifica o português
1911 Primeira reforma ortográfica em Portugal
1931 Primeiro Acordo Ortográfico Brasil-Portugal
1939
Publicado o #Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa#, primeiro grande dicionário brasileiro, organizado por Laudelino Freire, membro da Academia Brasileira de Letras
1996
Criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e, a partir de 2002, Timor-Leste)
2008
Adesão do Brasil a uma nova reforma ortográfica para países de língua portuguesa

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