quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Índios, jesuítas e bandeirantes: São Paulo nos idos do século XVII

Publicado originalmente na Revista História Viva, n. 98
Alberto Luiz Schneider

Nenhum brasileiro ou estrangeiro que viva ou visite São Paulo pode ignorar uma palavra e seus derivados: bandeirantes. Mesmo se a pessoa não tiver lembranças escolares das mitológicas figuras dos desbravadores paulistas, terá ao menos viajado pelas rodovias Anhanguera, Bandeirantes, Raposo Tavares ou Fernão Dias; passado pela avenida dos Bandeirantes ou pela ponte das Bandeiras; contemplado o   Monumento às Bandeiras, a estátua de Borba Gato ou o Palácio dos Bandeirantes.
E se a pessoa tiver algum requinte de cultura e curiosidade histórica certamente visitará o Museu do Ipiranga, onde terá de conviver com uma legião de bandeirantes pintados, esculpidos e narrados nas obras do acervo da instituição, sempre fortes, másculos, brancos de feição ibérica, retratados como representantes de uma “raça de gigantes”, como os designou o historiador paulista Alfredo Ellis Jr.
Mas quem foram, afinal, os bandeirantes? Não os de pedra, mas os de carne e osso, que viveram no longínquo século XVII, o tempo áureo das bandeiras? Não é possível entendê-los sem compreender o tempo e o mundo em que viveram e se defrontaram com os outros personagens dessa história: os índios e os jesuítas. 
Tudo havia começado ainda no litoral, mas ganhou impulso com a fundação do Colégio dos Jesuítas, que em 1554 estabeleceu no planalto de Piratininga o primeiro núcleo colonial português no interior do continente. Em 1560, o povoado ganhou uma Câmara e se tornou a vila de São Paulo de Piratininga, que se tornaria o ponto de partida para a ocupação de vastas porções da América do Sul nos séculos seguintes.
Aos poucos, colonos portugueses começaram a se fixar na região, tomando posse de porções de terra concedidas pela Coroa – as sesmarias, medidas em léguas –, ou pela Câmara – as datas de terra, medidas em braças. Logo, porém, surgiu um problema: como plantar sem homens? Os paulistas do século XVI, ainda antes de subir a serra do Mar, tinham encontrado nos nativos da região o “remédio para seus males”.
Ao contrário dos senhores de engenho da Bahia e de Pernambuco, que tinham no açúcar um produto de alto valor comercial e podiam importar escravos negros, os modestos paulistas não dispunham de recursos para tanto. Apesar dos obstáculos à escravidão indígena – tais como a obstinada resistência dos autóctones, a firme oposição dos jesuítas e a posição ambígua da Coroa – os colonos foram, ao poucos, elaborando um sistema produtivo assentado na servidão indígena.
Os primeiros povoadores portugueses da Capitania de São Vicente eram majoritariamente homens. O cronista Pero Magalhães Gandavo, por volta de 1570, afirma que parte considerável dos moradores da vila de São Paulo era formada por filhos de índias e brancos. Os mamelucos, mesmo bastardos, já não eram mais “selvagens” e, nos primeiros tempos, gozavam de status muito próximo ao dos brancos.
Diferentemente das índias, apenas concubinas ou mesmo escravas, as mulheres mamelucas casaram, formalmente, com portugueses, dando origem a antigos troncos familiares. O padre jesuíta Manuel da Nóbrega afirma que João Ramalho – um português que naufragara na costa de São Vicente e vivera entre os índios – “tinha filhas casadas com os principais homens” da capitania.
Nos testamentos dos antigos paulistas dos séculos XVI e XVII não era raro que o moribundo deixasse alguns bens para os filhos ilegítimos, mamelucos. Os inventários da época, que demonstram os afetos dos antigos paulistas à beira da morte, também exibem seu senso de propriedade, pois, embora El-Rei declarasse que todos os gentios fossem livres “conforme o direito”, os paulistas os utilizavam como cativos, inclusive deixando-os como herança, afirma o escritor José de Alcântara Machado em seu livro
Vida e morte do bandeirante
Com seus saberes e práticas indígenas, os mamelucos foram vitais para a adaptação dos portugueses à terra, contribuindo para a formação de uma cultura própria, dotada de uma espécie de consciência de si. Os paulistas desenvolveram, a partir da contribuição indígena, padrões tecnológicos apropriados à vida na floresta que iam desde a maneira de andar na selva até o modo de caçar e de preparar os alimentos. Havia sertanistas, em geral mamelucos, que serviam como guias e intérpretes, pois falavam a “língua geral” – uma língua indígena de origem tupi –, transitando entre o mundo indígena e o português.
Conhecimentos de origem nativa foram cruciais para a sobrevivência no sertão, tais como métodos de localização por meio da observação dos movimentos do sol e dos astros; técnicas de caça, pesca e construção de embarcações; sistemas de comunicação por meio do fogo; e o conhecimento da flora e da fauna, fundamental para a seleção de alimentos, bebidas e medicamentos.
Os paulistas, diz Sérgio Buarque de Holanda, sucumbiriam na floresta se usassem um sistema de sinalização convencional, o que os obrigou a cultivar “um espírito de observação permanentemente desperto, o que só se desenvolve ao contato prolongado com a vida nas selvas. Essa espécie de rústico alfabeto, unicamente acessível a indivíduos educados na existência andeja do sertanista, requer qualidades pessoais que dificilmente se improvisam”, afirma o historiador paulista em seu livro
Caminhos e fronteiras
Os bandeirantes levavam na bagagem apenas cabaças de sal e pães duros, feitos de “farinha de guerra” (de mandioca ou de milho) e completavam sua alimentação com a caça e a pesca, incorporando ao cardápio alimentos tirados da terra: frutas silvestres, palmitos, ovos de jabuti e uma infinidade de outros víveres do mato. Outra fonte de comida eram as roças indígenas de milho, feijão e mandioca, geralmente saqueadas. Muitas vezes os paulistas deixavam, na ida, roçados que, na volta, tornavam-se vital  para sobrevivência na floresta. As bandeiras, carregadas de índios presos, demandavam por alimentos para que os cativos chegassem vivos a São Paulo.
A partir de 1570 a Coroa portuguesa baixou uma nova legislação segundo a qual os indígenas só poderiam ser atacados e aprisionados por “guerra justa”. A medida foi uma resposta a pressões da Igreja, sobretudo dos jesuítas, e tornou a vida dos paulistas um pouco mais complicada, mas não acabou com a caça aos nativos.
Entre as  maiores, mais célebres (e mais trágicas) bandeiras estão as expedições sertanistas que destruíram as reduções do Guairá, localizadas em uma área hoje pertencente ao estado do Paraná onde os jesuítas espanhóis haviam fundado, a partir de 1609, várias missões ao longo dos vales dos rios Paraná, Iguaçu, Piquiri, Ivaí, Paranapanema e Tibagi. A região já estava em disputa entre portugueses de São Paulo e os espanhóis do Paraguai, ambos interessados na mão-de-obra indígena, quando os jesuítas ali se instalaram, aumentando a competição pelos índios.
Os padres da Companhia de Jesus – fossem espanhóis ou portugueses (ou mesmo italianos) – não deviam lealdades aos seus respectivos monarcas, mas ao papa e ao próprio projeto evangelizador, cuja missão era reduzi-los à fé cristã e ao catolicismo. Nas fazendas dos paulistas ou nas encomiendas castelhanas, os índios eram objeto de cobiça.
Na primeira metade do século XVII, eram os homens e não as terras que estavam em disputa. Os índios guaranis eram o grande objeto do ávido interesse tanto dos colonos quanto dos jesuítas, embora na região do Guairá houvesse também outras etnias. A reputação de bons agricultores tornava os guaranis particularmente atraentes aos paulistas.
Embora disputassem índios, os castelhanos do Paraguai e os paulistas tinham em comum um profundo ódio dos jesuítas, que os unia apesar dos eventuais conflitos de interesses entre suas respectivas pátrias de origem. As ambições comuns os levaram a manter um comércio ininterrupto na região. Os lusos vendiam produtos europeus e asiáticos, além de escravos negros trazidos do litoral, e compravam prata, que jorrava de Potosí.  
Essa cooperação ficou clara durante a União Ibérica (1580-1640), período em que as Coroas de Portugal e Espanha foram concentradas nas mãos dos reis espanhóis. Nessa época, apesar da proibição do comércio entre as colônias lusas e hispânicas, os paulistas demonstraram tamanha boa-vontade com os castelhanos que propuseram a abertura de um caminho entre São Paulo e o Paraguai, como mostra a ata da Câmara da vila de São Paulo de 1603: “Pareceu bem a todos pelo proveito que se espera deste caminho se abrir e termos comércio e amizade por sermos todos cristãos e (termos) um rei comum”.
O estoque de índios guaranis, reunidos pelos padres jesuítas, atiçou a cobiça dos bandeirantes. Raposo Tavares, em 1628, liderou uma grande expedição contra as reduções do Guairá. Segundo relatos da época, talvez exagerados, a bandeira contou com 900 paulistas, entre brancos e mamelucos, e 2000 guerreiros tupis (outras fontes da época falam em números bem mais modestos).
Trata-se, de qualquer maneira, de uma das maiores bandeiras já montadas pelos paulistas até aquele momento. A violência empregada pelos sertanistas foi desvastadora. O método adotado consistia em cercar a aldeia e “persuadir” os índios a acompanhá-los até São Paulo. Segundo o relato dos jesuítas, em certos casos, os paulistas “entravam, matavam e assolavam (...) só para o terror e o espanto dos que ficavam vizinhos”.
A longa caminhada até São Paulo e outras vilas da  capitania de São Vicente era extenuante. Ainda segundo relatos dos jesuítas – cujo ódio aos paulistas era evidente –, crianças e velhos, enfermos e aleijados eram mortos para que a viagem andasse mais depressa e seus corpos dados de “comer aos seus cachorros”. Por certo os jesuítas interessavam-se em pintar os paulistas como monstros. No entanto, é inegável que os sertanistas usavam fortes “argumentos” para convencerem os índios – muitas vezes presos em ferros, especialmente os homens – para os acompanharem até São Paulo.
Entre 1628 e 1632, por meio de sucessivas bandeiras, as aldeias guaranis do Guairá foram dizimadas. Das quinze reduções, 13 foram destruídas e duas deslocadas mais para o sul, nas proximidades do rio Uruguai. Apesar da imprecisão dos números, o historiador John Manuel Monteiro estima, em seu livro Negros da Terra, que entre 30 mil e 60 mil índios foram capturados no Guairá (para os jesuítas os números chegariam a 300 mil). Ninguém sabe quantos chegaram vivos a São Paulo.
Esgotado o manancial de índios de Guairá, os paulistas avançaram sobre as reduções do Tape, no atual estado do Rio Grande do Sul. A província de Tape era, como a do Guairá, recente, mas reunia milhares de guaranis. Das seis reduções, três foram destruídas até 1638. Raposo Tavares e Fernão Dias Pais, bem como outros sertanistas de menor renome, participaram das entradas que, desta vez, encontraram feroz resistência dos índios.
O ano de 1641 marcou o fim das expedições paulistas às missões espanholas do sul. A bandeira de Jerônimo Pedroso de Barros foi derrotada pelos índios guaranis armados e apoiados pela Missão de São Francisco Xavier (na atual província de Misiones, na Argentina). Contribuiu para a derrota paulista o fato dos jesuítas buscarem apoio do governador-geral do Brasil, do então rei da Espanha e de Portugal, Felipe IV, e até do Papa. O Sumo Pontífice chegou condenar os paulistas, empregando termos duríssimos, o que repercutiu negativamente em Santos, São Paulo e Rio de Janeiro, aplacando temporariamente o ânimo dos bandeirantes.
Entre 1648 e 1676 os bandeirantes voltaram a atacar os guaranis no sul, mas sem a força e o alcance de outrora. Desta vez, as bandeiras mudaram de rumo e passaram a capturar índios na região onde hoje fica Minas Gerias e o Centro-Oeste do Brasil. As bandeiras, agora, eram menores, geralmente organizadas por potentados, ou mesmo senhores paulistas menos afortunados, que reuniam seus parentes, seus índios mansos e se lançavam ao sertão.
Talvez a última bandeira de grandes proporções tenha sido a de Raposo Tavares, que em 1648 atacou as reduções jesuítas do Itatim, onde hoje fica o Mato Grosso do Sul. O historiador português Jaime Cortesão definiu esse empreendimento como “a maior bandeira do maior bandeirante”. Raposo Tavares e seus companheiros do Itatim percorreram milhares de quilômetros, atingindo o rio Madeira, e daí o Amazonas, terminando a expedição em Belém do Pará, após vagarem por três anos na floresta. Quando o “maior bandeirante” voltou a São Paulo, estava envelhecido e desfigurado, a ponto de seus parentes não o reconhecerem.
A história dos bandeirantes ainda teve outros capítulos dramáticos, como a luta dos homens de Domingos Jorge Velho contra o Quilombo dos Palmares, em 1695, no atual território de Pernambuco e Alagoas. Ou ainda, na mesma época, a guerra contra os índios no sertão do São Francisco. A descoberta de ouro, também no final do século XVII, na região onde veio a ser Minas Gerais, serviu para alimentar a tese que os velhos paulistas foram os construtores do território brasileiro.
A historiografia tradicional, representada por autores como Afonso Taunay, Alfredo Ellis Jr. e o próprio Jaime Cortesão, alimentou a tese de que os bandeirantes paulistas “recuaram o meridiano de Tordesilhas” e foram vitais para o alargamento das fronteiras do país. Que as fronteiras do Brasil se fixaram muito além de Tordesilhas é fato, para qual os bandeirantes tiveram, decerto, determinada importância, mas certamente involuntária. Em pleno século XVII, esses exploradores não estavam a serviço da formação territorial do Brasil (que não existia como país), nem agiam por razões geopolíticas. Nem mesmo estavam em busca de território, mas sim de índios, para usá-los como escravos, pois deles, em larga medida, dependiam.
Para saber mais:
História de São Paulo Colonial. Maria Beatriz Nizza da Silva (org.). Editora da Unesp, 2008
Vida e morte do bandeirante. Alcântara Machado. Imprensa Oficial, 2006
Caminhos e fronteiras. Sérgio Buarque de Holanda. Companhia das Letras, 2001
Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. John Manuel Monteiro. Companhia das Letras, 1994
Raposo Tavarese a formação territorial do Brasil.  Jaime Cortesão. Imprensa Nacional, 1958

Um comentário:

  1. Informações bem valiosas quanto a historiografia Portuguesa. Lí originalmente na história viva. Como lá não consigo um "link" direto com você decidi comentar por aqui. Acho de uma valia enorme a sua preocupação quanto a uma revisão de nossa velha história paulista. Atualmente faço parte de um grupo de estudos chamados GEINT (Grupo de estudos sobre o Integralismo), a linha de pesquisa visa um mapeamento de grupos de extrema direita (sim... foi além do integralismo...), sou apenas um iniciante, mas vejo o quanto essa visão de transpor o passado diretamente para o presente, “lançou” as ruas diversos grupos que reivindicam essa história paulista, que é somente deles. Como já é de seu conhecimento, pesquiso há alguns anos a questão da memória paulista, principalmente esta ligação com o Bandeirantismo, que remontado no hoje, acaba sendo uma visão equivocada e que recorta dois séculos de história de São Paulo, e iguinora o presente, um tiro no pé de uma ideologia que tenta conservar algo que já ruiu há tempos. A forma sutil com que você deixa a mensagem sobre a memória, achei fantástica! Uma das principais críticas que recebo da academia é exatamente o meu fervor por algumas mudanças... Acredito que seu artigo seja uma continuação da publicação anterior (historia viva nº97), que você e a Profª Maria Candelária comentavam sobre a questão do Bandeirantismo e da memória paulista. Agradeço pelo artigo, e acredito que a História Viva seja a principal revista que circula em São Paulo sobre o seguimento, a tempos menciono que a Revista de História da Biblioteca Nacional por vezes privilegia a produção carioca, o que não acho estar errado, e que publicações sobre a historia de São Paulo fazem avançar alguns debates, mesmo que aos poucos, sobre muita coisa que precisa ser revista, principalmente sob um olhar estatal sobre o que é ser paulista. Parabéns Amigo. Abraço. Thiago Maciel

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