Artigo originalmente publicado na Revista Real. Setembro 2011
Em setembro temos a "semana da pátria", como nos ensinaram os livros didáticos. Mário de Andrade já disse que "pátria é o acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der". As nações são criações históricas e culturais e nunca uma essência "natural", nem mesmo uma essência cultural. Ao contrário, são criações humanas complexas, tributária de uma trama política e histórica construída e reconstruída através dos tempos. Os próprios mapas são móveis e as fronteiras (ou a ausência delas) mudam ao longo do tempo. O certo, porém, é que a nações existem e existem sobre um lugar. E nesse lugar tem história.
Todos já ouviram frases como: "a descoberta do Brasil", "o Brasil, quando os portugueses chegaram...", "quando os holandeses invadiram o Brasil...", etc. Textos como esses derivam de equívocos, oriundos da ausência de uma consciência histórica mais apurada, inclusive nos meios escolares e cultivados. São malefícios herdados historiografia tradicional, interessada em explicar a nação, mesmo quando ela ainda não existia.
O Brasil, simplesmente, não existia em 1500, quando a esquadra de Cabral aportou em algum ponto da costa atlântica da América do Sul. Eram aqueles apenas territórios de um continente novo (do ponto de vista europeu). Os habitantes do vasto continente não eram os "verdadeiros" brasileiros, eram, sim, verdadeiros indígenas de diferentes nações, falando línguas e cultivando distintas tradições e, sobretudo, sentindo-se tupis, tupinambás, guaranis, xavantes, ianomâmis, etc.
Não se pode falar em "Brasil-colônia" nem 1630, quando os holandeses ocuparam Pernambuco e áreas adjacentes. Havia a América portuguesa que, do ponto de vista da ocupação européia, não era um continente, mas um arquipélago. Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro ou São Vicente (São Paulo) eram apenas portos, muitas vezes mais conectados a Lisboa do que uns em relação aos outros. Apenas São Paulo de Piratininga contava com um pequeno núcleo de povoamento fixo, habitada por (poucos) brancos, mestiços e índios a viver longe da costa atlântica. Quando os bandeirantes paulistas acharam ouro, no que viria a ser Minas Gerais, entre 1693 e 1695, a partir daí houve um grande impulso rumo aos sertões vastos e profundos da América portuguesa.
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Quando esses territórios, essas gentes e essas culturas viriam formar uma "unidade", cujo o nome seria, para simplificar, "Brasil"? Só com a Independência, em 1822. Antes disso havia uma vaga consciência entre os lusos-americanos, de que algo os diferenciava dos lusitanos de além-mar. É a partir da Independência que o Brasil começou a se inventar como um país unido. Unidade política que aconteceu na América portuguesa, não foi possível à América espanhola, que se fragmentou em dezenas de países. Não devemos esquecer, porém, que a possibilidade do Brasil se fragmentar foi enorme ao longo de toda história.
Mas porque, afinal, o Brasil não se "desmontou"? Não há respostas definitivas para isso. Existem, no entanto, hipóteses. Para o historiador Fernando Novais, o Brasil permaneceu unido porque havia um consenso entre as elites das diferentes partes da América portuguesa em torno da escravidão, o que tornaria a forma monárquica e escravocrata conveniente aos donos do poder, parafraseando Raimundo Faoro. Em quase todo o mundo hispânico, a escravidão terminou com as independências. Entre nós, sobreviveu quase todo o século XIX. A explicação de Novais, portanto, faz sentido, mas não esgota o problema.
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Desde o início da colonização portuguesa cunhou-se a noção de "ilha-Brasil". De acordo com essa imaginação, o território português na América seria definido geograficamente pelos cursos dos rios Paraguai, Uruguai, Guaporé e Mamoré e pelo vale drenado pelos afluentes do rio Amazonas. Em outras palavras, as possessões portuguesas iriam do Amazonas ao Prata, alargando-se ao Oeste. Concebido como um todo geográfico e geometricamente definido e quase insular. Observemos que essa formulação não corresponde nem obedece ao tratado de Tordesilhas. Esta antiga narrativa, baseada em relatos e mapas de viajantes, funcionou como mito da origem (territorial) do Brasil – interpretado, ou imaginado, para falar como Benedict Anderson, como uma unidade natural, que a Independência só consagraria.
A ideia de que o Brasil é uno desde sempre é tão profunda que o próprio Fernando Novais e boa parte da melhor historiografia brasileira do século XX utilizaram a expressão "Brasil-Colônia", como se tivesse havido desde os tempos coloniais uma unidade política nesses vastos territórios. A América portuguesa, no chamado período colonial, dividia-se em "Estado do Maranhão", que compreendia o Ceará, Maranhão e o Grão-Pará" (Amazônia) e o "Estado do Brasil", que ia do Rio Grande (do Norte) até a Colônia de Sacramento (Uruguai), passando por São Pedro do Rio Grande (do Sul). O "Estado do Maranhão" uma dignidade jurídica e administrativa separada do "Estado do Brasil" em 1621-8. O Ceará uniu-se novamente ao "Brasil" em 1656. Os dois "Estados" só foram unificados em 1774, sob a égide das reformas do Marques Pombal. Mesma data em que a capital do "Estado do Brasil" foi transferida de São Salvador da Bahia de Todos os Santos para São Sebastião do Rio de Janeiro. (Estado do Brasil, Estado do Maranhão ou Estado das Índias é como os portugueses da época nomeavam suas colônias).
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Entre 1580 e 1640 as monarquias portuguesa e espanhola foram unificadas sob a égide dos Filipes de Espanha. As Coroas não foram fundidas, mas o rei de Espanha era também rei de Portugal, e de Madri comandava as duas monarquias católicas. Se nesses remotos tempos a ideia de fronteira era algo abstrata, ficaram ainda mais com a união das duas Coroas ibéricas, facilitando a presença de comerciantes portugueses, muitos deles cristãos-novos, em diferentes lugares do mundo hispano-americano, como Veracruz de Ignacio de la Llave (México) ou Real de Nuestra Señora Santa María del Buen Ayre (Argentina). Facilitou também a presença de castelhanos na América portuguesa, especialmente em São Paulo
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A imaginação acerca dos bandeirantes também serviu ao discurso da unidade do Brasil. Autores como Afonso Taunay, Cassiano Ricardo e mesmo o importante historiador português Jaime Cortesão contribuíram para formular a leitura segundo a qual as bandeiras seriam verdadeiras epopeias da construção nacional. Segundo essas narrativas, os bandeirantes paulistas, colonizadores do continente, legitimaram a noção de "ilha-Brasil". Nesse sentido, os bandeirantes seriam obscuros e anônimos trabalhadores da unidade brasileira, antecipando os esforços diplomáticos futuros.
Não podemos negar a potência explicativa da formulação de Novais, nem excluir a influência de antigas construções mitológicas, pois a história é um inventa-mundos, a operar de acordo com circunstâncias, interesses, possibilidades e mesmo acasos. A diplomacia portuguesa, desde a era colonial, e a brasileira, a partir da Independência – o Barão do Rio Branco que o diga – trabalharam tenazmente para tornar a noção de "ilha-Brasil" em razão (histórico-geográfica) de Estado, mobilizada em tornar possível uma unidade política que estaria impressa numa mitológica "realidade geográfica", anterior à colonização, anterior mesmo à própria história.
O consenso escravocrata de que falava Novais certamente deitou raízes (profundas e terríveis) em nossa formação histórica, mas a força (política) de mitos e o empenhado em vir a ser, concorreu, em algum grau, para a montagem do Brasil. A história não é a cinza morta do passado, mas o fogo vivo que cozinhou o tempo e nos fez como somos. Seríamos outros, se a história fosse outra. E os tempo futuro há de ser o que os homens fizerem dele, a partir dos limites, das possibilidades, dos interesses e das circunstâncias.
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