Publicado originalmente na Revista História Viva, n. 78
Alberto Luiz Schneider
A história normalmente começa antes do que parece. Brasília como idéia, projeto e sonho, nasceu antes do presidente Juscelino Kubitschek tomar a decisão política de erguer a nova capital no meio do nada. Muitíssimo antes dos traços modernistas de Lucio Costa e Oscar Niemeyer serem esboçados, Brasília foi desejada e imaginada, desde os primórdios da Independência.
Ao contrário do que convencionalmente se imagina, JK não inventou Brasília – a cidade que em 2010 comemora 50 anos –, apenas a construiu, cumprindo um preceito constitucional, que previa a transferência da capital do país para o centro geográfico do imenso território brasileiro.
Brasília é a materialização de um velho projeto, cuja idéia remonta a ninguém menos que José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), o Patriarca da Independência. Em um panfleto chamado "Aditamento ao projeto de Constituição para fazê-lo aplicável ao Reino do Brasil", publicado em Lisboa, em 1822, Bonifácio propôs a construção de uma nova capital: "No centro do Brasil, entre as nascentes dos confluentes do Paraguai e Amazonas, fundar-se-á a capital desse Reino, com a denominação de Brasília".
Após a efetivação da Independência, da qual fora um dos artífices, Bonifácio tornou-se presidente da primeira Assembléia Constituinte de nossa história, em 1823, onde defendeu, entre outras idéias, a abolição do tráfico negreiro, a instrução pública, a fundação de uma universidade, uma reforma agrária e a construção "de uma nova capital do Império no interior do Brasil, em uma das vertentes do rio São Francisco, que poderá chamar-se Petrópole ou Brasília..."
Houve manifestações dessa natureza ainda antes das proposições de Bonifácio. Hipólito José da Costa (1774-1823) publicou, a partir de 1813, no Correio Braziliense – veículo de sua propriedade e considerado o primeiro jornal brasileiro, embora publicado em Londres –, vários artigos em que reivindicou "a interiorização da capital do Brasil, próxima às vertentes dos caudalosos rios que se dirigem para o norte, sul e nordeste". Obviamente José Bonifácio conhecia as idéias de Hipólito que, como ele, era um intelectual liberal e progressista para os padrões da época.
O tema voltou à baila através da pena do historiador e diplomata Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), que ao longo de sua vida intelectual escreveu diversas vezes sobre o assunto. Em 1849, em uma carta ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, intitulada #Memorial orgânico#, o historiador enumerou argumentos em favor de uma capital no interior do continente.
O texto mais importante de Varnhagen, porém, é #A questão da capital: marítima ou no interior?#, publicado em 1877, quando era embaixador em Viena. Novamente , ele teceu as virtudes do projeto de erguer uma capital no centro do país. Narrou ainda sua viagem ao sertão de Goiás e apontou o local que lhe pareceu mais apropriado à construção da "futura capital da União Brasílica”, localizado no “triângulo formado pelas lagoas Formosa, Feia e Mestre d'Armas, das quais manam águas para o Amazonas, para o São Francisco e para o Prata". O local é muito próximo aonde de fato Brasília viria a ser construída.
República
No contexto da Proclamação da República, a idéia de se construir uma capital no meio do Brasil reapareceu. O artigo terceiro da constituição republicana de 1891, proposto pelo constituinte catarinense Lauro Müller, estabeleceu o seguinte: "Fica pertencente à União, no Planalto Central da República, uma zona de 14.000 km2, que será oportunamente demarcada, para nela estabelecer-se a futura Capital Federal".
O Presidente Floriano Peixoto, atendendo às suas inclinações nacionalistas, deu consequência ao postulado constitucional, criando a “Comissão Exploradora do Planalto Central do Brasil” – que durou de junho de 1892 a março de 1893 – e foi liderada pelo astrônomo belga, radicado no Brasil, Louis Ferdinand Cruls.
A partir dos trabalhos da Comissão, formada por médicos, botânicos, astrônomos, geólogos, estavam dadas as condições para que “Brasília” aparecesse no #Pequeno Atlas do Brasil#, de 1922. Assim, 35 anos antes do início das obras, a futura capital do Brasil apareceu no mapa, no interior de Goiás, praticamente no lugar em que seria construída.
A antiga idéia, como não poderia deixar de ser, reapareceu na Constituição de 1934, embora o projeto não tenha avançado, em função da turbulência daqueles anos difíceis. No entanto, o projeto reapareceu no artigo quarto das disposições transitórias da constituição de 1946. Getúlio Vargas, então presidente eleito, criou por decreto, em 1953, a “Comissão de Localização”, presidida pelo general José Pessoa, cujos trabalhos transcorreram ao longo de 1954.
Em dezembro de 1955 – ainda sob presidência temporária de Nereu Ramos e poucas semanas antes da posse do presidente eleito JK– foi baixado o decreto n° 38.261, constituindo a “Comissão de Planejamento da Construção e da Mudança da Capital Federal”. Já sob a presidência de JK, em 19 de setembro de 1956 foi lançado o concurso nacional do Plano Piloto de Brasília.
Depois de várias especulações – se cogitou a hipótese de erguer Brasília no Triângulo Mineiro – a opção recaiu sobre o “Quadrilátero Cruls”, já proposto em 1893, cuja localização coincide com o local onde Lúcio Costa e Oscar Niemeyer finalmente projetaram a cidade.
Marcha para o Oeste
Quando JK tomou posse, o país havia assistido alguns esforços em ocupar o interior do território nacional. Ainda no começo do século XX, o marechal Cândido Rondon desbravou o oeste brasileiro, levando a cabo a tarefa de implantar telégrafos que ligassem os estados de Mato Grosso, Amazonas e Acre ao restante do país. Entre 1907 e 1917, a expedição estendeu 2.200 km de linhas telegráficas.
A conquista do Brasil continuou na década de 1940. Getúlio Vargas criou a “Marcha para o Oeste”, a fim de incentivar a ocupação do centro-oeste. A Expedição Roncador-Xingu foi planejada para conquistar e desbravar o coração do Brasil. Iniciada em 1943 e liderada pelos irmãos Villas Bôas, a expedição adentrou o Brasil central, chegando até a Amazônia, travando contato com diversas etnias indígenas ainda desconhecidas.
Naquele momento – o início da década de 40 – a grande maioria dos 43 milhões de brasileiros se concentrava no litoral ou próxima dele. A construção de Brasília faz parte de um movimento histórico cujo objetivo maior foi ocupar o vasto território brasileiro.
Até meados do século XX, o Brasil ainda era, metaforicamente, um “arquipélago”, pois sequer havia estradas que conectassem as diferentes regiões do país. A Belém-Brasilia, iniciada só nos anos 50, praticamente junto com as obras da nova capital, foi a primeira rodovia digna desse nome entre a Amazônia e o restante do país.
Brasília, poranto, deveria contribuir para a interiorização da população brasileira, facilitando a integração física do território nacional. Era o Brasil empenhado em ocupar o Brasil, dando vazão às antigas formulações de José Bonifácio Andrade e Silva e Francisco Adolfo de Varnhagen, em pleno século XIX.
Brasília, Brasil
Brasília encerra idéias importantes, como as de integrar e modernizar o país e a de construir uma nação a partir de um projeto, e não ao deus-dará. Mas também simboliza a corrupção que marcou sua construção, os negócios escusos entre empreiteiras e o Estado, e a existência do poder central longe da maioria dos brasileiros e da pressão das ruas.
A capital, contudo, também simboliza uma “vontade de nação”. A cidade é portadora de um projeto de país, de uma idéia de grandeza. Niemeyeir a vestiu com linhas modernas. E ainda que os prédios em traços algongados e curvos carreguem imperfeições, dificultem a vida e pareçam artificiais, a cidade encerra idéias de beleza, inclusão, e convivência.
Ambigua, torta, bela e longe da maioria do brasileiros, Brasília é brasileiríssima.
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