segunda-feira, 28 de novembro de 2011

A nação em obras

Alberto Luiz Schneider
Artigo originalmente publicado na Revista Real. Outubro 2009
As nações são invenções históricas relativamente recentes. Tal como as conhecemos - "um povo", "uma memória comum", um Estado – datam do final do século XVIII. A palavra nação vem do latim natio que designava "uma comunidade local, um domicílio, uma família, uma condição de pertencer", como argumeta Homi Bhabha ("Nation and narration", London: Routledge, 1990). A ideia do Estado-Nação como uma entidade política, administrativa e legislativa só veio mais tarde e foi, aos poucos, sendo assimilada e confundida com a de nação, no sentido moderno da palavra, cujo significado, não obstante, continua vago.
A Revolução Francesa é o ato histórico que melhor sintetiza e simboliza a modernidade, com sua vocação homogeneizante e igualitária. As nações foram terríveis máquinas de destruição cultural e linguística, tanto quanto foram instrumentos utilizados para a construção da cidadania. Luís XVI, cuja legitimidade vinha de Deus, tinha súditos de diferentes línguas e culturas, sobre os quais detinha direitos absolutos. Já as nascentes repúblicas – ou mesmo as monarquias constitucionais, como na Inglaterra - tinham cidadãos e a legitimidade do poder vinha do "povo". Não por coincidência, só nesse momento a palavra povo passar a significar uma coletividade nacional. Não é possível pensar a idéia de nação sem pensar em povo. Eis o problema: sob o manto do mesmo Estado, onde havia vários povos, culturas e tradições, haveria de se construir um "povo nacional". Tarefa que o nacionalismo assumiu para si, convencendo uns e eliminando outros. Como lembra Bhabha, o "nacionalismo não é o despertar das nações para uma auto-consciência: ele inventa nações que não existem".
Se é verdade que, para que houvesse um povo nacional, muitos povos e singularidades de toda ordem tiveram de ceder, em nome de uma maciça homogeneização cultural, não é menos verdade que as nações criaram solidariedades políticas entre aqueles que se supunham iguais. Estado nacional e cidadania são instituições fundadoras da modernidade, como tudo o que há de construtor e destrutivo nesse longo processo.
No Brasil, o Estado nasceu antes que a nação. Como poderia haver "um povo" onde a tradição colonial atualizada na letra da constituição garantia o direito legal de uns homens serem donos dos outros? A escravidão, mais afeita a antigos regimes aristocráticos, impedia por definição a existência de um ideal qualquer de nação, que pressupõe uma comunidade de iguais. A construção da nação, como um conjunto de bens simbólicos partilhados e um sentido de pertencimento cultural e linguístico, é relativamente bem sucedida no Brasil.
Não há entre nós movimentos políticos que reivindiquem autonomia e gozem de relativa aceitação sobre determinada região, como a Liga Lombarda, no Norte da Itália, ou o Eta no país Basco, na Espanha, ou ainda a pretensão autonomista da região de Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia. No entanto, como ideal moderno de nação, assentado sobre a cidadania e a democracia, é obra em construção.
Apesar das sutis melhoras, ainda há no Brasil dois países. Um incluído na cidadania e no consumo, outro excluído de uma e outra. O Brasil ainda é uma nação partida, como aparece no romance "Sybil or Two Nation", escrito em 1845 pelo conservador inglês Benjamin Disraeli, referindo-se à velha Inglaterra dos tempos da revolução industrial: "Duas nações entre as quais não há nenhuma comunicação nem simpatia: que são ignorantes dos hábitos, pensamentos e sentimentos uma da outra como se morassem em regiões diferentes, ou como se fossem habitantes de planetas distintos, formados por raças diferentes, alimentados por comidas diversas, ordenados de maneiras diferentes, e não fossem governados pelas mesmas leis."
O nascimento de uma nação
De acordo com dado do IBGE - a partir da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2006 – o número de brasileiros que vivem em casas onde ao menos um morador é beneficiado por algum programa social ofertado pelo Estado brasileiro chega a 46 milhões, o que equivale a beneficiar 25% da população. A transferência mais comum é a do Bolsa Família, presente em 14,9% das habitações. O programa é distribuído a famílias em situação de pobreza (renda mensal per capita entre R$ 60 e R$ 120) ou de extrema pobreza (menos de R$ 60). O BPC (Benefício de Prestação Continuada) é pago aos idosos cujas famílias tenham renda per capita inferior a 1/4 do salário mínimo.
Pela primeira vez na história do Brasil, uma formidável massa humana historicamente deserdada passa a existir para o Estado. Discutir a paternidade desses programas - iniciados na era FHC e aprofundadas na era Lula - é menos importante. Do ponto de vista histórico, assistimos sob nossos olhares incrédulos uma colossal extensão da cidadania. A inclusão desse contingente de modo oficial e efetivo, agora integrado ao Estado, é uma novidade que poucos percebem, perdidos nas discussões ordinárias das políticas ou imersos em outros cotidianos. A qualidade dessa integração, ainda paupérrima, é por certo discutível, mas provavelmente irreversível – para o horror dos conservadores brasileiros, que veem o despontar da República e da nacionalidade, no sentido universalizante da cidadania.
É preciso ir além do racionalismo pequeno e atentar para a dimensão simbólica dos grandes movimentos históricos que são, frequentemente, pouco espetaculosos. Quando os revolucionários franceses degolaram o rei não estavam apenas degolando um homem. Aquele ato bárbaro - pois toda morte o é - tinha um caráter simbólico impressionante: Um mundo declinava e outro despontava. Quando milhões de pessoas, cujas dezenas de gerações precedentes inexistiam para o Estado, passam a existir, podemos imaginar que há algo de novo na história. Talvez estejamos assistindo lenta e dolorosamente o nascimento de uma nação.

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