segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Modernidade e herança colonial

Alberto Luiz Schneider
Artigo originalmente publicado na Revista Real. Novembro 2011

Já faz alguns anos o Brasil e a América Latina estão em alta. Há razões pra isso. Os Estados Unidos e a Europa vivem a pior crise do pós-guerra, ao passo que a América Ibérica vive um dos melhores momentos de sua história. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, nunca uma série de crises foi tão pungente e tão global: os Estados Unidos convivem com baixa atividade econômica, altíssimo desemprego, queda de renda e aprofundamento da desigualdade social.
Obra cujo protagonista inicial foi Ronald Reagan, e o final, George Bush, o filho. Barack Obama mal consegue reagir, paralisado entre a decepção de uns e a fúria de outros. As ruas estão tomadas, à esquerda pelo Occupy Wall Street, e à direita pelo Tea Party. A Europa também vive sua pior crise, ao mesmo tempo econômica, social e política. O generoso projeto da União Europeia corre o risco de desabar. O que preocupa se olharmos para a história do Velho Mundo, que experimentou espetáculos deprimentes: guerras dinásticas intermináveis; católicos e protestantes matando-se mutuamente; a Inquisição queimando judeus, mouros, "bruxas"; revoluções e contra-revoluções. O nazi-fascismo coroou essa história de horror. O Japão, que nos anos 70 parecia ter reinventado o capitalismo, vive uma longa estagnação, radical envelhecimento populacional e imobilismo político.
Enquanto isso, o Brasil e a América Latina colhem elogios à direita e à esquerda. No seminário "Crisis y revoluciones posibles", realizado recentemente, o ativista de esquerda italiano Toni Negri diz o seguinte: "(...) vocês [da América Latina] devem entender que isso que estamos fazendo [na Europa] tem correspondências com o que já se vem fazendo nos vinte anos passados na América Latina, que não resolveu todos os problemas, sim. Mas não há dúvidas de que o que hoje se vê pelo mundo tem correspondências com a experiência argentina, boliviana e a grande experiência brasileira, de transformação do movimento operário de Lula, e com grande força de governo, são, todas, grandíssimas experiências de novas gestões do comum e de transformação radical das constituições, sobretudo evidentemente das constituições coloniais." [http://redecastorphoto.blogspot.com/2011/10/seminario-crisis-y-revoluciones.html].
À direita do espectro político também há um vigoroso reconhecimento de que o Brasil já não é mais aquele, como atestam as palavras de Larry Summers, ex-secretário do Tesouro americano: "O Brasil é um país com potencial de crescimento assombroso, que não lembra de modo nenhum o país que há pouco mais de uma década enfrentava sérias dificuldades financeiras". Summers afirmou ao jornal Valor Econômico "que, em 1999, quando negociava com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e seus 'bons amigos' Pedro Malan (então ministro da Fazenda) e Armínio Fraga (então presidente do Banco Central) para ajudar o Brasil a sair de uma crise, seria inimaginável pensar que, 12 anos depois, o Brasil 'conseguiria acessar o mercado internacional em condições melhores não apenas que Grécia, Portugal, Espanha e Bélgica, mas também França'". (Valor, 27/10/2011).
O outro lado da moeda
Muito bem! Só não podemos esquecer que as heranças coloniais de nossa formação histórica estão vivas, mais do que gostaríamos. Uma pesquisa realizada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), intitulada "Perfil dos principais atores envolvidos no trabalho escravo rural no Brasil", publicada pelo jornal O Globo, realiza uma radiografia das vítimas de trabalho escravo e também dos "senhores" que os praticam. A pesquisa mostra que os fazendeiros acusados de explorar os trabalhadores nasceram, em sua franca maioria, "no Sudeste, mas moram nas regiões próximas às lavouras (Norte, Nordeste e Centro-Oeste)". Mostra também que "eles têm curso superior e declararam como profissões pecuarista, agricultor, veterinário, comerciante, gerente, consultor e parlamentar". Em sua maioria, diz a pesquisa, "são filiados ao PMDB, PSDB e PR" (Globo.com 25/10/2011).
Os trabalhadores submetidos a condições análogas às da escravidão são de "baixíssima escolaridade (analfabetos e com menos de quatro anos de estudo), nunca fizeram um curso de qualificação. No entanto, 81,2% deles declararam que gostariam de fazer algum curso, principalmente os mais jovens: 95,2% dos que têm menos de 30 anos disseram ter preferência nas áreas de mecânica de automóveis, operação de máquinas, construção civil (pedreiro, encanador, pintor) e computação". Esses trabalhadores são originários do "Maranhão, Paraíba e Piauí", mas foram resgatados principalmente em Goiás, Pará, Mato Grosso, Maranhão, Tocantins e Bahia, regiões onde o agronegócio é dinâmico.
Segundo a pesquisa da OIT, "a agropecuária continua sendo o setor de maior concentração de trabalho escravo, sobretudo nas fazendas de cana-de-açúcar e produção de álcool, como é o caso do Pará; plantações de arroz (Mato Grosso); culturas de café, algodão e soja (Bahia); lavoura de tomate e cana (Tocantins e Maranhão)" (Globo.com 25/10/2011).
No dia 27 de outubro, no twitter, houve milhões de mensagens contra os nordestinos, por causa de problemas no Enem, ocasionados por uma escola de Fortaleza. Os twits propunham até morte aos nordestinos. A maioria das mensagens partiu do Sudeste e do Sul, especialmente de São Paulo. Em 2009, porém, os problemas do Enem foram em São Paulo. Não houve "twitaço" contra o estado. Nem houve gente propondo morte aos paulistas. O episódio suscita outra lembrança: uma jovem paulista, Maiara Patruso, propôs "morte aos nordestinos" – também no twitter, com milhares de seguidores – na noite em que o país conheceu o resultado das eleições presidenciais. A jovem paulista, descontente com o resultado da eleição, também havia proposto morte aos nordestinos.
No mesmo dia 27 de outubro veio a público a notícia de que adolescentes brancas de Curitiba agrediram uma jovem negra. A menina de 16 anos foi agredida física e moralmente pelas colegas basicamente por ser negra. Nem pessimismo paralisante, nem euforia tola, mas a consciência de que falta muito para civilizar o país, inclusive os seus setores pretensamente modernos.

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