segunda-feira, 28 de novembro de 2011

O Brasil e a escravidão

Alberto Luiz Schneider
Artigo originalmente publicado na Revista Real. Abril 2010

Pensar o Brasil é uma perspectiva que não deve estar fora da agenda de intelectuais, jornalistas ou artistas brasileiros e, naturalmente, não deve estar ausente da preocupação dos cidadãos em geral. A vida do país penetra na existência do homem médio, na medida em que as grandes e pequenas decisões políticas afetam seu cotidiano.
Nascer e viver o Brasil – suas coisas, sua cultura, sua realidade social, sua herança histórica – não é o mesmo que nascer e experimentar o mundo sob o ângulo da cultura e da sociedade norte-americana, nigeriana, suíça ou argentina. O lugar no qual fomos socializados não é estrangeiro aos indivíduos que somos. Cada um traz dentro de si um mundo, um país, uma cidade, uma família, uma porção de amigos, enfim, uma existência social e culturalmente localizada.
Inteirar-se do Brasil não significa abrir mão do gosto pelo grande-mundo, como nos faz lembrar a vida e a obra de um brasileiro cosmopolita, como foi Joaquim Nabuco. Em memória ao grande intelectual pernambucano – cujo centenário de morte comemora-se em 2010 – convém retornar à agenda que alimentou o Abolicionismo (1883), obra na qual discute a fundo a escravidão e suas consequências e onde se lê: "A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil". 
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Por mais "natural" que possam parecer, as nações são invenções históricas, cuja construção obedeceu aos jogos de interesses, ao poder, às armas, às circunstâncias e às possibilidades. Sua artificialidade, porém, não as torna menos significativas. O morro conhecido como Pão de Açúcar é obra da natureza, e o Cristo posto sobre ele é uma invenção humana.
No entanto, a "artificialidade" do Cristo e a "naturalidade" da montanha compõem a paisagem-cultural com similar intensidade. Em outras palavras, as nações são grandes e poderosos artifícios, mas toda a cultura é artifício. Por isso mesmo, essa grande engenharia histórica, à qual chamamos de nação, é mutável e transformável, viva e polissêmica. Se é certo que o Brasil existe como uma poderosa invenção humana, não é menos certo que existem muitos Brasis. Há um Brasil que concreta e simbolicamente descende dos escravocratas e há outro que descende dos escravos. Ambos, brasileiríssimos. Não são dois países separados, mas o mesmo país, multifacetado.
O país nasceu com a escravidão, e as heranças desse passado ainda estão vivas, não apenas na memória histórica, mas em toda a vida nacional, como uma chaga viva de nosso cotidiano social.
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Não podemos esquecer que dos 11 milhões de negros arrancados da África e transladados ao Novo Mundo, aportaram no Brasil, entre 1550 e 1856, nada menos que 5 milhões de homens e mulheres, o que representa 44% desse contingente humano. Isto faz do Brasil a maior experiência escravocrata da era moderna. Apenas para que tenhamos uma proporção do peso do passado, os Estados Unidos, a segunda maior experiência escravocrata das Américas, recebeu – entre 1675 e 1808 –, "apenas" 560 mil negros, o que equivale a 5,5% daqueles 11 milhões.
Durante o Império, o Brasil foi a única nação independente das Américas a praticar o tráfico negreiro em larga escala, os "brigues imundos" de que falava Castro Alves. No entanto, em 1826, sob pressão inglesa, o Brasil assinou um tratado internacional, comprometendo-se a extinguir o comércio de escravos. Em novembro de 1831, em conformidade com o referido tratado, é aprovada uma lei proibindo formalmente o tráfico de gente. Apesar de ilegal, portanto em aberta afronta às leis brasileiras, entraram no país 760 mil negros até que, em 1856, finalmente o tráfico cessa.
A lei de 1831 estabelecia que os senhores deveriam ser multados, além de arcar com os custos do retorno das vítimas à África. Nesse momento, a escravidão era considerada imoral por grande parte das consciências civilizadas, mas a partir daquele ano, essa prática era também ilegal. Em outras palavras, os senhores brasileiros haviam sequestrado milhares de homens livres, à revelia não apenas dos interesses ingleses, das consciências mais sensíveis, mas da própria lei brasileira. Esse foi – nas palavras do historiador Luis Felipe de Alencastro – o pecado original do país. O Brasil independente, obra de brasileiros, não apenas não rompeu com o passado colonial ibérico, como renovou a aposta no arcaísmo.
Na década de 1850, com a lei Eusébio de Queirós, o tráfico é, finalmente, extinto, mas os senhores, na verdade sequestradores, foram anistiados, ao passo que as vítimas do sequestro, e seus descendentes, permaneceram escravos até 1888. O Brasil foi o último país do Ocidente a abolir a nefanda instituição.
Se as nações são constructos políticos, históricos e culturais, portanto abertas às mudanças, temos de parar de anistiar os poderosos, como os torturadores do regime militar, e construir mecanismos democratizantes capazes de gerar uma grande experiência civilizatória nos trópicos. Precisamos cumprir a profecia e realizar o país do futuro.

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