segunda-feira, 28 de novembro de 2011

O futebol e o Brasil

Alberto Luiz Schneider
Artigo originalmente publicado na Revista Real. Junho 2010
É tempo de Copa do Mundo, talvez a efeméride que mais profundamente toque as cordas vitais do país, em suas obsessões, frustrações, esperanças e desvãos. Nossos sentimentos e ressentimentos explodem em tempos de Copa. Não pensemos se tratar de originalidade brasileira. Não exatamente. Nossos vizinhos argentinos são tão ou mais emocionais do que nós somos em relação ao futebol. E como esquecer os "racionais" franceses comemorando a vitória de 1998, na Champs-Élysées, com mais fúria do que celebraram o bicentenário da Revolução de 1789? A Revolução que mudou o mundo.
No entanto, não neguemos que o futebol expressa a vida brasileira como poucas outras linguagens. O futebol, dentro e fora de campo, é uma narrativa sobre o Brasil. Como não comparar a truculência e os interesses escusos de certos cartolas, com os fragmentos mais atrasados de nossa elite política? E como não comparar Garrincha com Macunaíma, de Mário de Andrade? Se são velhas as associações entre o futebol e o Brasil é porque o esporte bretão penetrou profundamente no imaginário brasileiro do século XX, como todos aqueles que visitarem o Museu do Futebol no Estádio do Pacaembu, em São Paulo, hão de testemunhar.
Certa vez o historiador Fernando Novais, comentando Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, afirmou que "se o Brasil permanece Brasil não se moderniza, se se moderniza deixa de ser Brasil". Também esse é o paradoxo do futebol brasileiro. As últimas Copas do Mundo – perdidas, como as de 1990, 1998 e 2006, ou vencidas, como as de 1994 e 2002 – são "mitos, emblemas e sinais" de que o Brasil já não é mais o mesmo.
A década de 1990 marcou o avanço da modernidade ocidental nos mais diferentes poros da sociedade e da cultura brasileira. O tempo em que o futebol – como a vida para além dos campos – era atravessado pelo sagrado e pelo mágico foi ficando para trás, rumo à racionalização característica da modernidade.
Antes os meninos que não iam à escola – pois escola não havia – aprendiam a jogar bola (ou qualquer objeto razoavelmente esférico) nas várzeas, nas praias, nos pastos, nos terrenos baldios, que hoje quase não existem mais. Os brasileiros pobres – de onde saíam e saem nossos craques – já são principalmente urbanos, bem ou mal já vão à escola, já não tem medo de saci (antes temem a polícia ou os traficantes ou o futuro da empregabilidade). Para o bem ou para o mal, ou para o bem e para o mal, o Brasil pós década de 1990 é outro país.
O futebol, porém, continua a ser um "local da cultura" onde não há a completude desse processo de racionalização, como nos lembra José Miguel Wisnik, em Veneno Remédio: o futebol e o Brasil (Companhia das Letras, 2008). Mais do que em qualquer outro esporte, nele persistem elementos não-contabilizáveis, impossíveis de serem resumidos em estatísticas, o que comporta combinações raras de finalismo e gratuidade, de lógica e acaso. Talvez por isso o futebol tenha sido a invenção europeia aceita mais entusiasticamente em outras paragens do mundo. Mais do que isso, o futebol pode ser resignificado. O Brasil de 1958, na definição de Eric Hobsbawn, reinventou o futebol, de posse de outra expressão corporal (ginga, a cadência), para espanto dos europeus.
O futebol brasileiro (e o próprio país) já não é mais o mesmo, tornando-se mais "europeu", mais "ocidental" e mais "moderno", o que a convocação definida por Dunga metaforicamente confirma. Pensando numa escala que transcende o futebol, mas o inclui, podemos indagar: teria sido um bem ao Brasil tornar-se mais competitivo, mais "cerebral", mais "responsável"? Mais moderno, enfim?
Eis uma falsa pergunta, pois não existe apenas uma encarnação possível da modernidade. Aliás, ela própria pressupõe a crítica e a reflexão, por isso mesmo não precisamos imitar nem a Europa, nem os Estados Unidos, do mesmo modo que não precisamos recusar a experiência civilizatória do Ocidente, à qual pertencemos em vasta medida.
Não esqueçamos que as nações são invenções históricas modernas, por isso mesmo abertas a disputas de toda ordem. Também o futebol é um campo de batalha simbólica, ou melhor, um campo de forças. Por que não uma modernidade que admita, conviva, incorpore e re-signifique a tradição, o popular, o mestiço e tudo aquilo que está para além do moderno-ocidental? Não se trata dualisticamente de lamentar o declínio poético daquele Brasil, torto como Garrincha e Aleijadinho (certamente mais pobre, mais desigual e mais iletrado), nem saudar unilateralmente a modernidade que tem nos trazido alguma escola, um pouco de progresso e um tiquinho de igualdade.
Afinal, tendo nascido como uma província do colonialismo, no século XVI, não interessa ao Brasil ingressar no século XXI como província do globalismo. Por isso, por que não uma modernidade à brasileira, morena, com Ganso e Kaká no meio e Neymar e Luís Fabiano no ataque? Por que não um Brasil disciplinado, mas criativo, marcador, mas ofensivo? Por que não um Brasil que cuida da estabilidade macro econômica, mas também investe em escola, saneamento básico, saúde e educação pública?
O futebol, como índice, linguagem e narrativa da vida, bem que poderia sinalizar para outra modernidade, mais brasileira e menos patriótica, menos "ame-o ou deixe-o", de triste memória, que o discurso de Dunga encarna, nas palavras e nas escolhas.
No entanto, justamente por ser um esporte que combina finalismo e gratuidade, tática e magia, lógica e acaso, disciplina e criação, talvez a dinâmica da experiência supere os limites do planejamento moderno-conservador.

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