segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Sarney e a crise do Senado: (mal)ditos e não-ditos

Alberto Luiz Schneider
Artigo originalmente publicado na Revista Real. Agosto 2009

De tempos em tempos aparecem novos escândalos de corrupção no Brasil, frequentemente associados à crise política, leia-se disputas de poder entre grupos e partidos rivais. O último episódio é a crise no Senado, personificado no presidente da Casa, José Sarney. O Senado Federal tem cometido uma série de delitos constrangedores a um país já tarimbado em escândalos na esfera pública. A revista britânica “The Economist”, muito propriadamente, referiu-se à câmara alta brasileira como “House of Horror”. São mais de 10 mil funcionários, nomeações de parentes e protegidos (que muitas vezes sequer aparecem nas dependências do Senado) e, absurdo dos absurdos, medidas secretas. Secretas justamente por serem contrárias aos interesses públicos. Mais do que escarafunchar detalhes sórdidos da nossa vida parlamentar, convém compreender o processo.
Não há como entender a corrupção fora das disputas políticas, assim como não é possível entender a política sem compreender o papel da imprensa, instância responsável por estabelecer a mediação – nada trivial – entre os representantes e osrepresentados, ou seja, entre os diferentes grupos políticos e os múltiplos setores da sociedade, envoltos num complexo jogo de interesses.
É um equívoco vulgar acreditar que exista uma disputa que oponha políticos, de um lado, e sociedade, de outro, como tendem a acreditar setores médios pautados pela grande imprensa, que insufla um simplório orgulho de ser “contra os políticos”, como se eles não refletissem, de algum modo, a sociedade que os elege e onde se enraízam.
As disputas não opõem “políticos” e “sociedade”, mas sim diferentes grupos sociais através de seus vínculos com o Estado, o que envolve governo, oposição, empresas, partidos, sindicatos, classes sociais, regiões, ONGs, correntes de opinião, etc.
Há um detalhe pouco percebido pela opinião pública, pois pouco explorado pela opinião publicada: não há corrupção na esfera pública (políticos) que não passe por segmentos empresariais. A rigor, não existe a sociedade, no singular, existem diferentes grupos sociais, com interesses divergentes. Assim como não existem os políticos, mas diferentes grupos políticos, representando grupos sociais em disputa. Senão vejamos. Qual a diferença entre o Sarney de hoje e o Sarney de alguns poucos anos atrás? Nenhuma. Trata-se do mesmo político atrasado e patrimonialista, um dos últimos oligarcas do Nordeste. A diferença é que antes Sarney era aliado, por conveniência política, do projeto modernizador capitaneado por Fernando Henrique Cardoso.
E agora, o mesmo Sarney, também por conveniência, é aliado de Lula, cujo governo estende, ainda que de modo tênue, a fronteira da cidadania. E porque Sarney era aliado de Fernando Henrique e agora é aliado de Lula? Pela mesma razão! O poder de Sarney vem dos vínculos com o governo, o que garante acesso a cargos, verbas epoder, em uma palavra. As oligarquias regionais dos estados mais pobres necessitam das benesses do governo federal para sustentar e reproduzir seu poder. E porque Fernando Henrique se aliou a figuras como Sarney e Antônio Carlos Magalhães? Pela mesma razão que Lula se alia a Sarney e Collor.
Ligações perigosas
Tanto o PSDB de Fernando Henrique e seus aliados orgânicos (grande imprensa, classe média, empresários, etc), como o PT de Lula e os setores que historicamente o apóiam (sindicatos, ONGs, movimentos populares, universidades), não detém, nem detiveram, força parlamentar sufi ciente para impor-se no Congresso, forçando-os a buscar aliados nos setores mais retrógrados do país. Não há dúvida de que Lula agora, ou Fernando Henrique antes, teriam preferido se aliar a Buda e Jesus Cristo (seria mais barato). Como eles não são parlamentares brasileiros, Lula se aliou a figuras como Sarney e Renan Calheiros, do mesmo modo que Fernando Henrique se aliou ao próprio Sarney e a ACM.
É possível resgatar aspectos positivos no projeto modernizador de Fernando Henrique, assim como há importantes inflexões sociais no atual governo. Mas isso não vem ao caso agora. O fato inescapável é que a grande imprensa - Estadão, O Globo, Folha, Veja, etc - se identifica mais com o projeto encampado pelo governo passado do que com o atual, razão pela qual essa imprensa se horroriza mais com o Sarney de Lula do que com o Sarney de Fernando Henrique. Embora Sarney seja essencialmente o mesmo. Traduzindo: a imprensa ataca Sarney para acertar Lula. O que não quer dizer que não existam razões perfeitamente justificáveis para se atacar Sarney. Mas atacá-lo como se o problema fosse apenas ele é ignorância ou má fé. O problema não é Sarney em si, mas todo o sistema político de representação, que em crise (não só no Brasil, mas aqui de modo mais grave), do qual Sarney é parte ativa, obviamente. Ao eleger-se Sarney como Judas corre-se o risco de degolá-lo politicamente e acabar por salvar o sistema corrupto que impera no Senado, o que não interessa ao fortalecimento das instituições democráticas, mas interessa às disputas eleitorais de 2010.
Um eventual movimento fora Sarney é improdutivo, pois só convém ao jogo eleitoral em curso. A corrupção e os desmandos são generalizados no Senado. Na há um só fato realmente novo nos poucos meses do atual mandato de Sarney, cuja eleição contou com o apoio integral do PFL, agora Democratas, o mais aguerrido partido de oposição a Lula (aliás, Sarney e o antigo PFL possuem a mesma origem política: a Arena, o partido que dava sustentação à ditadura militar. Todos os desmandos vêm de antes (como a contratação de parentes e afins, tráfico de influências, medidas secretas, etc), razão pela qual os diferentes setores da sociedade efetivamente engajados no fortalecimento das instituições democráticas devem pleitear a renúncia coletiva de toda a mesa diretora do Senado. Ou o que seria mais apropriado: exigir a própria dissolução da atual composição do Senado e a imediata convocação de novas eleições. Processo, por certo, traumático, para o qual sequer há jurisprudência, na medida em que a Constituição não prevê esse expediente. Seria preciso criá-lo, reformando todo o sistema político, processo moroso e complexo, no entanto, pedagógico e civilizador. Sacrificar Sarney apenas para saciar a sede de sangue da opinião pública, afim de que tudo fique como está, é simplesmente inócuo.
 

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